02 jan, 2018 - 13:37 • Inês Rocha
“Não”. É esta a palavra que Ana Milhazes Martins tem sempre na ponta da língua quando vai a um qualquer estabelecimento comercial. “Não quero, não preciso”. Recusa tudo o que sabe que vai acabar no lixo – guardanapos, palhinhas, embalagens, loiça descartável, talões, brindes.
A gestora da página Lixo Zero Portugal e autora do blogue Ana, Go Slowly admite que o estilo de vida que adoptou em 2016, de “desperdício zero”, nem sempre é fácil de levar. Mas vê alguma evolução em Portugal: já não se sente sempre uma “alien” (extraterrestre), “aquela maluquinha estranha do lixo”. “Explico porque é que vivo desta forma e as pessoas já acham normal”, conta.
A "blogger" orgulha-se de, nos últimos meses, ter reduzido ao máximo o lixo que produz. Em Agosto, começou a colocá-lo num frasco, seguindo o exemplo da fundadora do movimento “Zero Waste” à escala global, Bea Johnson. O lixo que a americana produz num ano, juntamente com o marido e os dois filhos, cabe num pequeno frasco de vidro.
Neste momento, Ana Milhazes Martins já quase não faz lixo. “A única coisa que está no meu frasco é pêlo do meu cão”, garante. Mesmo esse, está a juntar para o devolver à natureza. “Não faço lixo orgânico suficiente para decompor aquele pêlo, portanto vou colocá-lo num local com árvores, porque os pássaros vão buscá-lo para fazer ninhos”, explica.
O objectivo? Ir contra a corrente. Dizer não ao consumismo desenfreado que está a transformar os oceanos em lixeiras a céu aberto. “Já não é suficiente reciclar, temos mesmo que tentar reduzir a quantidade de lixo que fazemos”, afirma.
Apesar de notar uma crescente abertura nas pessoas a este tema, Ana considera que a iniciativa de produzir menos lixo difícil de reciclar deve partir mais das empresas e do poder político. Se fosse governante, acabava com todos os produtos descartáveis, proibia a venda de escovas de dentes e palhinhas de plástico, substituindo-as por outras de bambu ou, no caso das últimas, de aço inoxidável.
“Os copos, os pratos, os talheres... tudo isso foi uma coisa que a sociedade moderna inventou para ser prático, mas está a destruir os nossos oceanos”, afirma.
A activista apoiaria ainda a criação de taxas ou multas para as empresas que não usassem materiais biodegradáveis ou recicláveis, preferindo os plásticos. E sugere que haja mais incentivos à compra de produtos a granel.
Como viver sem fazer lixo?
Numa sociedade consumista, eliminar totalmente o lixo que produzimos não é fácil, admite Ana Milhazes Martins.
O primeiro passo para quem quer começar a evitar o desperdício é, para a "blogger", recusar os descartáveis. Pedir uma chávena e uma colher “de verdade” sempre que possível, recusar pratos e talheres de plástico, não aceitar brindes de que não precisamos. “Essa é a principal força que temos.”
Ana tenta sempre explicar o porquê de dizer “não” a quase tudo. “Quando eu explico, eu deixo lá a semente. Tenho a certeza que a pessoa depois fica a pensar naquilo”, diz.
O segundo passo é “olhar para o caixote do lixo e ver o que está lá, quer nas embalagens quer no lixo comum. O que é que podemos diminuir já? No meu caso, olhei para o lixo e tinha essencialmente comida e toalhitas”. “Portanto, tentei atacar essas duas frentes e quando comecei a fazer compostagem e a usar toalhitas de pano consegui uma grande redução”, conta.
10 dicas para tornar a sua vida “Zero Waste”:
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Ana garante que o estilo de vida que escolheu é muito mais económico do que o consumista. “A grande vantagem do granel é que compramos a quantidade que queremos. Muitas vezes, vamos fazer determinada receita, compramos um quilo de qualquer coisa e fica em casa e estraga-se. É dinheiro que vai para o lixo”.
Ainda assim, admite que “a maior parte das mercearias que vendem produtos a granel são biológicas, e não podemos comparar o preço do supermercado do produto convencional com o produto biológico”. Mas diz já ter feito a comparação no que toca a produtos biológicos: “muitas vezes o preço ou é igual ou a granel é mais barato. Para mim compensa muito."
Uma vida com pouca “tralha”, em casa e na agenda
Apesar de só ter agarrado o desafio do “Desperdício Zero” há um ano e meio, Ana Milhazes Martins já tinha aderido ao minimalismo em 2011. Nessa altura, sentiu que tinha “demasiadas coisas a acontecer” na sua vida e decidiu começar a eliminar o que não lhe interessava realmente.
A limpeza foi desde a sua casa – divisão a divisão, foi eliminando toda a “tralha” que tinha a mais – até aos compromissos na agenda e mesmo às pessoas com quem se relacionava.
Reduziu toda a sua roupa a cerca de um terço, de forma a caber tudo num armário apenas; livrou-se de objectos de que não precisava e procurou doar tudo a quem mais precisava; escolheu os passatempos e compromissos que realmente a preenchiam e afastou-se mesmo das pessoas com quem já não se identificava.
A decisão foi libertadora. Ao eliminar tudo o que estava a mais, conseguiu descobrir novas paixões – como o ioga, que hoje é a sua actividade principal.
Depois de quase 10 anos a trabalhar na área das Tecnologias de Informação, Ana trocou a secretária pelo tapete de ioga em Novembro deste ano. Hoje, aos 33 anos, dedica-se a dar aulas de ioga e meditação, além de gerir o blogue “Ana, Go Slowly”, a página Zero Waste Portugal - Lixo Zero e o grupo de Facebook Lixo Zero Portugal, que já conta com quase 2 mil membros.
O objectivo do grupo é a partilha de experiências entre os que já aderiram a este estilo de vida e aqueles que estão ainda a dar os primeiros passos.
Para Ana, tem sido uma fonte de inspiração e de novas amizades. “No grupo formou-se uma comunidade em que há um grande espírito de entreajuda”, conta.
Aquilo que a deixa mais feliz é sentir que está a inspirar outros e a fazer diferença. “Fico muito contente quando as pessoas me vêm dizer que aquilo que publiquei fez com que começassem a mudar”, conta. “Às vezes, achamos que uma pessoa só não faz diferença, mas todos juntos fazemos”, considera.
Desde 1950 até hoje, o homem produziu 8,3 mil milhões de toneladas de plástico, o equivalente ao peso de 822 mil torres Eiffel ou 1 bilião de elefantes.
Desses, cerca de 6,3 mil milhões de toneladas transformaram-se em lixo. Apenas 9% desse lixo foi reciclado, segundo um estudo de uma equipa de cientistas das universidades da Geórgia, da Califórnia, e da Sea Education Association, publicado este ano pela revista Science Advances.
A quantidade de pedaços de plástico a flutuar nos oceanos aumentou mais de cem vezes nos últimos 40 anos, segundo a associação espanhola Ambiente Europeu.
Se em 2000 a produção de plástico era de cerca de 190 toneladas por ano, nos últimos anos, o mundo tem produzido cerca de 300 milhões de toneladas de plástico anualmente, o equivalente ao peso de toda a humanidade. Oito milhões de toneladas são despejadas nos oceanos, matando, por ano, cerca de um milhão de aves e 100 mil mamíferos marinhos. Os números são da UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura).
Segundo um estudo da fundação da reconhecida velejadora britânica Ellen MacArthur, em parceria com a consultora McKinsey, a produção de plásticos aumentou 20 vezes desde 1964, atingindo 311 milhões de toneladas em 2014.
Nesse ano, a proporção entre as toneladas de plástico e as toneladas de peixe registadas nos oceanos era de um para cinco. Em 2025, será de um para três e em 2050 irá evoluir de um para um. Ou seja, em 2050, os oceanos poderão ter mais plástico do que peixe.