01 jun, 2018 - 08:30 • Maria João Costa
Ao palco chama “bicho”, um bicho que lhe tomou o coração há mais de 75 anos. Aos 91 anos, o ator Ruy de Carvalho recebe no sábado, em Fátima, o Prémio Árvore da Vida - Padre Manuel Antunes, atribuído pelo Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura e pelo Grupo Renascença Comunicação Multimédia.
“Foi uma surpresa muito grande e honrou-me muito”, diz sobre a distinção que o júri lhe atribuiu por unanimidade. Em entrevista conjunta à Renascença e à Agência Ecclesia, Ruy de Carvalho pega na ideia de árvore para dizer que a sua vida deu “frutos muito bons” com “ramagens muito bonitas, primaveras maravilhosas” e com algumas “tempestades”.
E o que o salvou dessas intempéries? “A fé”, responde-nos.
“Sou um bom cristão, mas talvez não seja um católico muito cumpridor”
Sentado no palco do Teatro da Trindade, em Lisboa, onde se estreou Ruy de Carvalho fala da sua dimensão religiosa. “Não sei se sou um católico perfeito” diz-nos. Apesar disso, considera-se “um bom cristão”, por se preocupar muito com “aquilo que preocupou Cristo que são os seus semelhantes, aqueles a quem é preciso dar amor". "Se dermos amor uns aos outros vivemos em Cristo.”
Apesar de se ter estreado no papel de satanás, numa peça encenada por Ribeirinho, no palco já representou vários papeis de igreja. Ele que se afirma como "franciscano” recorda que já fez “a vida de São Francisco de Assis” em cena, uma memória que o leva a falar do Papa Francisco. “Estou muito feliz porque tenho um Papa chamado Francisco. Escolheu exatamente o nome que eu escolheria se um dia fosse Papa. Já fui, mas como ator.” Para Ruy de Carvalho, o Papa Francisco é o “pároco do mundo” que já fez “muita gente fazer as pazes com a Igreja”.
Considera-se “um bom cristão, mas talvez não seja um católico muito cumpridor”, admite, sublinhando a importância que a humildade tem na sua vida.
A cultura, que "está um bocadinho abandonada”, é "a arca do tesouro de um povo"
“Não sou diferente dos meus semelhantes, tenho é jeito para representar. É a minha qualidade e é o meu serviço aos meus semelhantes.” O ator não se arrepende de qualquer papel que tenha representado em mais de 75 anos de carreira e hoje diz ter “mais respeito pelo público, pelos colegas” e por si. “A nossa obrigação é não querer ser mais do que os outros.”
Questionado sobre o poder do teatro em Portugal, considera que hoje “é pouco”. “Não temos muito poder. Há pouco teatro em Portugal, a cultura está um bocadinho abandonada. Não conta. Andamos a pedir 1% do Orçamento do Estado. É muito pouco. Há outras coisas que levam muito dinheiro. Os bancos, por exemplo, deveriam ter tido mais juízo no dinheiro que emprestavam. Houve muita corrupção e isso temos de combater.”
Ruy de Carvalho não se coíbe de críticas, por exemplo, ao facto de não se valorizar a cultura no país. “A cultura é a arca do tesouro de um povo. Quem tiver uma grande arquitetura, escultura, pintura, um bom teatro, boa música, grandes artistas, tudo isso é uma grande riqueza e é fundamental.”
Caminha com a nova geração, mas falta-lhe representar um palhaço
Já fez televisão, cinema, teatro. Quando lhe perguntamos onde está o seu coração, aponta para o palco que pisa. “Aqui, no teatro!”
No fundo gosta é de representar, confessa Ruy de Carvalho, que agora está em cena com uma peça no Teatro Experimental de Cascais com um elenco de jovens atores. "Não lhes imponho nada, mas ajudo se puder", diz sobre a geração mais nova. "Eles começam a perceber que sou capaz de os ajudar e então perguntam-me coisas.”
Esta energia renova-o como ator. “O sangue novo traz-nos a reciclagem porque é muito mau vivermos na experiência. A experiência evolui e vamos caminhando com a experiência dos mais novos.”
Sempre que sai de cena, Ruy de Carvalho não leva consigo as personagens que representa. Recorda com uma memória precisa todos os papeis que já desempenhou, mas há um que, aos 91 anos, lhe falta no currículo. “Gostava de fazer um palhaço, com as suas qualidades e defeitos”, de colocar. Gostava de colocar o “nariz vermelho” porque, nesse papel, “tem de ser simpático e saber dizer aquilo que pode melhorar os homens” e o palhaço pode fazer isso.
A seu ver, em Portugal hoje há mais "libertinagem" que liberdade. O ator, que já participou em peças emblemáticas como o 'Rei Lear' de Shakespeare, afirma: “Temos factos evidentes e coisas que aconteceram há pouco tempo que mostram que há libertinagem e não liberdade. A liberdade é uma coisa muito bonita que se resolve com diálogo.”
Também com a peça “Passa por mim no Rocio”, de Filipe La Féria, no seu currículo, Ruy de Carvalho pega no exemplo da revista à portuguesa para apontar o que faz falta. “Os políticos estão a precisar que os critiquem, bastante.”
A família e o público
As palmas para um ator “são a recompensa”. Mas há mais a encher o coração deste ator que o público se habituou a ver no palco, na televisão e no cinema. “Tenho uma coisa que me consola muito. Sou estimado, sou beijado, dizem-me coisas muito bonitas na rua e eu às vezes até fico admirado porque não sabia que tinha aquelas qualidades. Sinto-me muito bem.”
A família teve um papel “fundamental” na sua vida e carreira, em especial Rute, a sua falecida mulher. “Era uma pessoa com uma fé sem limites”, sublinha, antes de falar do casamento de mais de 50 anos que tiveram. “Durante um tempo privámo-nos da bênção da igreja porque vivemos 15 anos casados só pelo civil. Mas acho que o casamento pela igreja é uma bênção. Só se deve abençoar o que é bom. Abençoar uma coisa que falha não é bom.”
Hoje, diz-se “um homem rico” com uma família repleta de filhos, netos e bisnetos, a quem transmitiu os seus valores, como a humildade. Sobre o seu público e o seu testemunho de vida, agora premiado pela igreja, termina a dizer que um dia quer ser recordado assim: “Foi útil e serviu os seus semelhantes com amor.”