18 jun, 2018 - 11:28
Abre-se a cortina e o espetáculo está montado. Risque-se. O confetti e a exuberância da fantasia entram em cena. Esqueçam-se todas as falácias subjacentes à premissa. O aviso é claro, mas vem do escuro. Este espetáculo - risque-se “espetáculo” -, manifesto - este manifesto - emerge do subpalco, das catacumbas e nem sempre é luz.
Os primeiros passos, tímidos, cobertos de breu prometem um caminho na vertigem do abismo. Por isso as galochas da avó e o impermeável amarelo são requeridos. Navegar pelas águas turbulentas da memória não é um faz-de-conta e o canto da sereia esconde uma experiência desconfortável. É como estar sempre a um passo do precipício, onde a luz e a sombra dançam em desafio à morte, ao esquecimento.
O cenário denuncia uma busca desorganizada: para percorrer os corredores e as prateleiras do armazém das memórias, é absolutamente necessário estar munido de um "kit" de sobrevivência. O humano não resiste facilmente ao caos, persegue incessantemente a simetria, a ordem escondida, as pontes que se estabelecem entre fenómenos aparentemente aleatórios.
Mas o processo sistemático da análise não tem de ser científico ou contabilístico. Para António Gedeão, compreender a composição de uma “lágrima de preta” era saber-lhe o espectro de emoções, ignorando propositadamente o pH e os elementos da tabela periódica. Para Sara Barros Leitão, encenadora de “A Teoria das Três Idades”, a investigação não se pode isentar da surpresa, do devaneio e muito menos da empatia. “Há todo um processo científico para preservar o arquivo, mas eu, como não sou cientista, prefiro os processos emocionais”, diz a criadora sobre a sua viagem ao arquivo do Teatro Experimental do Porto (TEP).
Os detalhes que fazem a História
Não se pode fotocopiar a lembrança, mas Sara Barros Leitão perdeu-se, durante um ano e meio, entre documentos históricos, cartas, atas de reuniões, queixas de “sócios indignados” e “contas de 45 fêveras num restaurante” para encontrar as pequenas histórias. “Desde o início, percebi que não me interessavam as grandes histórias e os grandes acontecimentos. Interessam-me os pormenores.”
65 anos de arquivo contêm sonhos, dos quais é preciso sacudir a poeira estelar. Contêm conflitos em capas de argolas com rugas entre atores e encenadores, assembleias gerais sobre obras e financiamentos, a passagem da primeira diretora de cena do TEP, depois de tantos homens na liderança, a indicação para “treinar os desmaios” e até o registo do dia posterior ao 1 de Maio de 1974, quando não houve exibição porque um dos atores estava rouco demais para atuar.
“Cheguei a pensar que o meu espetáculo iria ter 65 anos de duração. Não conseguia selecionar e então pensei: ‘OK, vou fazer tudo’. Mas, depois, desisti da ideia, passei para qautro horas, depois para três e, neste momento, está com uma 1h45”, conta Sara Barros Leitão.
O processo de criação é um desafio à segunda lei da termodinâmica, é caminhar para um estado de entropia cada vez menor. Mas, para a encenadora e única atriz da peça - embora outras vozes se insurjam -, “este é um espetáculo falhado, é um espetáculo que dificilmente verá a luz do dia. Todas as contrariedades que podiam acontecer estão, de facto, a acontecer. E a peça também é sobre isso. É sobre as pessoas não terem coragem para as pessoas dizerem que o seu espetáculo está mau.”
Mas este não é um espetáculo de agonia. Serve para apontar caminhos, esperanças, utopias e aprendizagens. “O processo de criação acompanhou as candidaturas aos apoios da DGArtes. Eu estive em ensaios sem saber se ia estrear ou não. Isto é muito doloroso e isto acaba por se manifestar no espetáculo. É sobre resiliência, que é o grande tema. É sobre resistir às contrariedades, à vida, à ditadura, à censura, às desilusões, ao sofrimento que é a criação”.
António Pedro e a "redundância"
“A Teoria das Três Idades” é sobre estender as memórias ao sol, revisitar o passado com luvas, pelo desconhecimento integral da sua acidez e, acima de tudo, sobre reconhecer que o passado e o futuro não são uma manta de retalhos, que estão intrinsecamente ligados. É também um manifesto sobre a criação, que é um parto doloroso, e um agradecimento “aos que vieram antes de nós”, é sobre o TEP e não é sobre ele. É sobre um teatro contra-regra. É sobre um teatro experimental, que só o pode ser assim.
“O António Pedro dizia, num dos documentos, uma coisa muito engraçada. Quando o convidam para fazer parte da direção artística do TEP, ele responde numa carta: ‘Agradeço imenso o convite e aceito desde já, porque faz todo o sentido para mim, mas há uma coisa que me está a fazer imensa confusão. Quero que fique claro que não fui eu que escolhi o nome de Teatro Experimental do Porto, porque isso para mim é uma redundância. Eu não sei o que é fazer teatro se não for experimental’”, conta Sara Barros Leitão.
“A Teoria das Três Idades” é também sobre a Sara Barros Leitão. “Esta sou eu, aqui e agora. Aqui e agora, eu quero ter umas galochas oferecidas pela minha avó. Aqui e agora, quero falar sobre os sócios que estão chateados. Aqui e agora, quero falar sobre a tabela de ensaio do ator que ficou rouco porque gritou tanto no dia 1 de maio de 1974 que não conseguiu ensaiar no dia seguinte.” É sobre como, por vezes, é fácil armazenar sonhos imensos em caixas pequenas. Mas não é sobre agonia. É sobre empatia, sobre o que resta de nós quando o tempo passa, mesmo que a passagem do tempo goste de pó.
“A Teoria das Três Idades” vai estar em cena esta segunda-feira, às 21h30, e amanhã, às 19h00, no Teatro Rivoli, no Porto. A peça está incluída no programa do FITEI, o Festival Internacional de Teatro de Expressão Ibérica.