04 out, 2018 - 13:00 • Maria João Costa
Depois de escrever umas linhas, Pepetela percebeu que “a realidade começava a impor-se”. O escritor angolano, de 76 anos, resolveu ficcionar sobre o que diz ser a “mudança de ciclo” político que está a acontecer em África.
Sem especificar um país, o autor conta, no livro “Sua Excelência de Corpo Presente”, a história da morte de um líder africano e, com ela, o fechar de um ciclo político ditatorial.
Prémio Camões, Pepetela fala, nesta entrevista à Renascença, sobre as relações Portugal-Angola e sobre a sua escrita. Devido a problemas nas costas, as quase 300 páginas do novo livro foram escritas de pé.
Escreveu este seu novo livro de pé?
Sim, porque estou, de novo, com problemas que não me permite ficar muito tempo sentado, sobretudo nessas cadeiras que são próprias para escrever, mas que para mim são péssimas.
Ao escrever de pé, constrói a história da mesma maneira?
Sim, penso que é a mesma coisa. Eu escrevi um outro livro, há muito anos, de pé e não notei diferença nenhuma. Claro que com a idade já não escrevo tão depressa e, às vezes, há outros problemas. O facto de escrever de pé exige períodos mais curtos, por causa dos cotovelos que não estão apoiados. E, então, há a tendência para ter tendinites nos ombros e coisas assim do género, por não estarem apoiados os cotovelos. São problemas da velhice!
Há pouco, dizia que nas pausas vai deitando-se e descansado. Esses momentos ajudam-nos a organizar a história?
Eu, agora, tenho outra maneira de escrever. Quando escrevi o tal primeiro livro de pé, tinha a história toda na cabeça, até porque era um livro com épocas históricas e não podia fugir muito daquilo que era. Agora, quando são livros apenas de imaginação, não há marcos históricos. Aí, por exemplo, nas pausas, não penso muito na história porque gosto de ser surpreendido pela história. É quando estou a escrever que ela vai surgindo.
Vamos abrir este novo livro, "Sua Excelência de Corpo Presente". A personagem principal começa a história deitado, ou seja, morreu e está dentro de um caixão, no seu próprio funeral, e começa a ver toda a gente que fez parte da sua vida. É um defunto que nos conta a história...
Era uma ideia que eu tinha de escrever, exatamente isso que disse. Era só essa ideia, alguém que está no caixão e assiste ao seu próprio enterro. Mas, quando comecei a escrever o livro, ao fim de algumas linhas, comecei a ver que a realidade do momento começava a impor-se. Aquele só poderia ser um chefe de Estado que estava ali naquele caixão. Não poderia ser outra coisa. Tinha que ser chefe de Estado e eu disse "OK, tem de ser um chefe de Estado africano, tudo bem. Se assim queres ser, continua".
Mas o leitor não sabe de que país é esse chefe de Estado...
Não, não... É, realmente, um chefe de Estado africano.
Deixa essa liberdade ao leitor?
O leitor pode situá-lo onde quiser. Casos desse tipo de regimes que começam com golpes de Estado de força foram muito comuns em África. Hoje em dia, começa a haver alguma mudança. É um ciclo que se está a fechar, de regimes, no mínimo, autoritários - chamemos-lhes assim, para evitar a palavra "ditador" e "ditaduras" - ou regimes com um partido dominante. Era o que havia em África, em todo o lado. Depois, pouco a pouco, começou a mudar num país ou outro. Agora, já começa a ser, realmente, uma preocupação de, pelo menos, uma metade dos governos de governarem melhor, com maior abertura, aceitarem melhor as oposições e a ideia de mudança.
É isso que está a acontecer no seu país, em Angola?
Pois, parece que estamos a entrar nessa fase, nesse ciclo. Parece que sim, que Angola acaba por se inscrever nesse movimento do continente, em particular da África Austral, a sul do Congo. O Congo ainda faz parte da nossa união de Estados da África Austral, porque tem repercussões em Angola, na Zâmbia.