18 jul, 2019 - 23:18 • Susana Madureira Martins
À pergunta se podia falar em português nesta conversa com Juan Gabriel Vásquez, o escritor colombiano respondeu com um "despacio", ou seja, só se fosse "devagar".
António Costa avisou então, entre risos, que iria falar em "portunhol", mistura de castelhano com português e declarou-se admirador do autor de "Reputaciones", que já tem alguns livros traduzidos em Portugal.
O primeiro-ministro nesta conversa no auditório da Casa da América Latina, em Lisboa, explicou que conheceu a obra de Vásquez através de um livro que lhe indicaram em Cartagena das Índias, numa das suas viagens de trabalho. Foi aí que o colombiano fez questão de saber neste mano a mano que importância teve a leitura de romances para o político português.
Costa respondeu que começou a ler "muito antes de fazer política", acrescentando que na política é preciso libertar-se "em algum momento do quotidiano, do dia a dia, da realidade e a melhor maneira de fazê-lo é ler romances", concluindo que "é um pouco como uma libertação do quotidiano, senão tornamo-nos escravos da realidade".
A partir daí a conversa passou para os escritores colombianos que Costa conhece, sendo incontornável a referência a Gabriel Garcia Marquez, cuja obra o primeiro-ministro garante ter lido "praticamente tudo o que escreveu", fazendo ainda referência ao livro "Cem anos de solidão" que existia na biblioteca dos pais.
A dada altura Costa apanhou mesmo Juan Gabriel Vásquez desprevenido e fez-lhe uma pergunta sobre uma parte do enredo do livro "Reputaciones" de que o colombiano é autor.
"O que aconteceu na noite em que Adolfo Cuellar praticou um atentado ao pudor à rapariga?", e, provocador, o primeiro-ministro desafiou o autor com outra pergunta: "houve atentado ao pudor ou não?", ao que o Vásquez respondeu que "a resposta está nas páginas do livro", arrancando risos numa sala algo vazia e rematando com um "não sei".
Na conversa que durou cerca de uma hora houve ainda tempo para falar de caricaturas, com Costa a considerar que depois da ditadura em Portugal as caricaturas e cartoons "são menos violentos, não é da tradição democrática".
Costa salientou que a caricatura foi especialmente agressiva na primeira República até 1926, dando o exemplo da ilustração de Columbano Bordalo Pinheiro "A porca da política", que tem duplo sentido - a sujidade e o animal -, considerando ainda que muitos dos "estigmas políticos negativos" atuais têm origem nessa altura. Juan Gabriel Vásquez rematou a conversa dizendo que as caricaturas são "um aguilhão forrado a mel", uma espécie de maldade adocicada.
Chegou o momento em que o primeiro-ministro quase fez de jornalista com a pergunta "o que se passa na Colômbia?", com Vásquez a fazer uma dolorosa descrição do cenário que se vive no país e da dificuldade em fazer vingar o acordo de paz assinado em 2016.
"Estão a gerar-se situações que são um caldo de cultura de violência; já há assassinatos, assassinatos de líderes sociais, assassinatos de guerrilheiros desmobilizados, está a criar-se um ambiente socialmente muito difícil e que está a gerar sofrimento para muita gente", explicou o autor colombiano, que apelou à necessidade de "roubar a guerra às suas vítimas".
Perante este cenário, António Costa, sempre em castelhano, defendeu que "a política é difícil, mas aqui [Portugal] é mais fácil", defendendo que "todos os acordos de paz valorizam a memória coletiva, mas também o esquecimento para perdoar para seguir em frente", dando o exemplo português com a entrada na democracia.
A partir daqui, o primeiro-ministro, que tinha acabado de chegar com atraso à casa da América Latina por causa do Conselho de Estado ali ao lado em Belém, deu precisamente o exemplo dessas reuniões em que com frequência são convidados estrangeiros e da estranheza que lhes causa o facto de se sentarem "frente a frente uma pessoa do PCP [Domingos Abrantes] que passou vários anos preso durante a ditadura e alguém que foi ministro de Salazar [Adriano Moreira]".
Tudo isto para Costa defender que foi este tipo de situações que permitiu a Portugal ter "hoje uma democracia muito consolidada, muito estável e que resiste muito bem às tentações das derivas populistas e dos racismos".
Numa habilidade que lhe é característica para terminar conversas e situações que vão além do tempo, Costa aproveitou o facto de Vásquez lhe perguntar o que achava de José Saramago. Aí o primeiro-ministro sacou de um presente que tinha destinado ao escritor colombiano e ofereceu-lhe o livro "Viagem a Portugal" do Nobel português.
Costa lá contou como tinha conhecido Saramago, o modo como se aborreceu "com as autoridades em Portugal", exilando-se em Lanzarote, co, Costa a desabafar que "Espanha está sempre de braços abertos para acolher o melhor de Portugal" e que como presidente da câmara tudo fez e conseguiu que a fundação com o nome do Nobel português ficasse em Lisboa, "antes que tivéssemos um novo Magalhães", atirou o primeiro-ministro, com referência ao navegador português que trabalhou ao serviço da Coroa espanhola.
Dito isto, o colombiano agradeceu o livro e o primeiro-ministro despediu-se com um "muchas gracias", aconselhando o colombiano a "aproveitar as férias e a aproveitar o livro para preparar as próximas", saindo depois a passo apressado do auditório da Casa da América Latina sem falar com os jornalistas.