29 ago, 2019 - 13:31 • Marta Grosso com redação
O médico Victor Fernandes, especialista que preside ao colégio da especialidade de cirurgia plástica e reconstrutiva da Ordem dos Médicos, diz que a aplicação de testosterona sem ser para fins clínicos e sem indicação de um médico representa um crime.
“Essa medicação é uma medicação exclusivamente de indicação médica, portanto, feita fora de ambiente médico, muito simplesmente é crime”, afirma o médico, à Renascença.
Segundo Victor Fernandes, a administração de testosterona é feita “exclusivamente para tratar situações que têm a ver com síndromes de insuficiência endócrina, determinados com algum rigor a partir de análises”.
“O médico, quando medica um doente com testosterona, fá-lo de acordo com o resultado das análises e com dosagens que têm a ver com as análises que leu e, portanto, só em situações médicas muito especiais e específicas. Não há outra maneira de fazer essa indicação”, sublinha o especialista.
Victor Fernandes comenta assim o caso do ator Ângelo Rodrigues, internado desde segunda-feira com uma infeção grave, alegadamente, resultante de uma injeção de esteroides (testosterona). O ator estará agora em coma induzido, depois de três cirurgias, segundo avança a imprensa.
Sobre o caso em concreto pouco se sabe, mas uma coisa é certa: nada indica que a administração do produto neste caso tenha sido feita em ambiente clínico nem por um médico.
“A infeção pode acontecer no contexto da contaminação do ato e isso é que me faz pensar que se calhar não estamos a lidar com pessoas em ambiente médico”, afirma o cirurgião da Ordem dos Médicos, a propósito das notícias que indicam que Ângelo Rodrigues terá sofrido um choque séptico.
A testosterona (hormona esteroide androgénica) é utilizada por algumas pessoas para aumentar a massa muscular, mas esta é uma aplicação “off label”, ou seja, fora das indicações homologadas para este medicamento.
“O tipo de indicação do produto testosterona não é esse [aumento da massa muscular] nem passa por ser qualquer coisa parecida com essa utilização”, reforça Victor Fernandes, sublinhando que essa “é uma indicação errada, perigosa, ainda por cima numa pessoa jovem, podendo provocar efeitos sistémicos muito graves”.
“É um erro crasso utilizar esse tipo de materiais para esses fins”, conclui.
Todos os procedimentos têm riscos. Peça referências
Se pensa em fazer uma cirurgia estética ou avançar para um procedimento estético não cirúrgico, antes de tudo peça referências.
“Primeiro, confirmar que [a pessoa que vai contratar] é médico. Em segundo lugar, obviamente, confirmar que é um médico que sabe o que está a fazer”, indica o presidente do colégio da especialidade de cirurgia plástica e reconstrutiva da Ordem dos Médicos.
Convidado do programa As Três da Manhã nesta quinta-feira, Victor Fernandes diz que “há especialidades [médicas] em Portugal e boas – isto é, bem feitas, que duram seis anos a fazer. De maneira que as pessoas têm que ter o cuidado de procurar um especialista que esteja devidamente credenciado no sentido de fazer o procedimento que pretendem”.
O facto de haver situações de aplicação de, por exemplo, “botox” (toxina botulínica) e outros produtos com vista a resultados estéticos – “a que nós chamamos ‘métodos ancilares’” – fora de clínicas (como cabeleireiros ou até dentistas) “é uma preocupação enorme” da Ordem dos Médicos, “expressa há pouco tempo pelo bastonário”.
“As pessoas têm de ter imenso cuidado nesse campo”, seja para “procedimentos não cirúrgicos ou cirúrgicos”, sublinha o cirurgião. Sendo que nas intervenções não cirúrgicas, o caso pode ser “efetivamente muito grave”.
“Pode-se comprar um material qualquer – até aos próprios fornecedores que as vendem, porque estão ali para ganhar dinheiro, são empresas – e não há propriamente uma legislação que restrinja este tipo de produtos à prescrição médica”, avisa.
“Deveria haver, porque a aplicação de produtos injetáveis deveria estar sujeita às regras que estão uma injeção de penicilina ou qualquer outra injeção”, defende ainda o especialista.
“Obrigação do médico defender o doente até de si próprio”
“É relativamente recorrente” haver pessoas a pedir alterações estéticas estranhas e de que não precisam, diz Victor Fernandes.
“Às vezes, as pessoas têm um problema relacionado com a imagem que não é exatamente um problema objetivo”, mas mais de foro psicológico.
“O problema é que ainda existe uma certa carga, quando sugerimos uma avaliação psicológica a um doente que está sentado à nossa frente”, lamenta o especialista.
“Há um limite de bom senso e é obrigação do médico defender o doente de si próprio até”, defende.
O número de pessoas a recorrer à medicina estética tem vindo a aumentar. “As pessoas tentam de alguma maneira ser como as que têm sucesso. É um fenómeno que não se passa unicamente neste campo”, afirma na Renascença.
Neste momento, não existem números concretos sobre a quantidade de cirurgias estéticas que se fazem em Portugal, mas todos nós temos, na nossa prática clínica, a sensação que há um ‘boom’ de procura de procedimentos estéticos, não só cirúrgicos como não cirúrgicos, no sentido de procurar uma imagem de corpo que seja mais de acordo com os sonhos de cada um”, reconhece Victor Fernandes.
Cada vez mais jovens
São cada vez mais jovens os pacientes que se sentam num gabinete de medicina estética e reconstrutiva.
“Antes, a maioria das pessoas [que nos procuravam] tinham atingido a quinta/sexta década de vida, procuravam o rejuvenescimento ou uma melhoria” – por exemplo, “um nariz naturalmente deformado de uma criança que, assim que atingia a idade adulta, procurava corrigi-lo”.
Hoje, são pessoas mais novas que pedem para fazer alterações estéticas. Há limites de idade? Não, além daqueles gerais.
“É evidente que um jovem que não seja maior, precisa do apoio e do consentimento formal dos pais para ser submetido a uma intervenção cirúrgica ou a qualquer procedimento médico. Isso faz parte das regras gerais da profissão e nenhum de nós, obviamente – espero – procede de outro modo na sua prática”, explica.
Depois, há a parte do bom senso e da ética, “que tem que se sobrepor aos interesses económicos”.
“É óbvio que, se o médico recusa o tratamento, fica sem o rendimento, mas a obrigação dele é recusá-lo, aconselhar o doente e dar uma orientação no sentido de uma certa sensatez”, defende o presidente do colégio da especialidade de cirurgia plástica e reconstrutiva da Ordem dos Médicos.
O aumento do número de cirurgias plásticas em Portugal segue a tendência do resto do mundo. A Sociedade Internacional de Cirurgia Plástica Estética contabiliza 23 milhões de cirurgias e procedimentos plásticos por ano. O Brasil lidera a lista, com 100 mil procedimentos feitos em 2016 a jovens entre os 13 e os 18 anos.
A prática é cada vez mais impulsionada por ideais de beleza e pela exposição nas redes sociais. Um estudo da Academia Americana de Cirurgia Facial, Plástica e Reconstrutiva revela que, em 2017, mais de metade dos cirurgiões plásticos (55%) atenderam pacientes que queriam ficar melhor nas fotos que publicam nas redes – ou seja, queriam aproximar-se das imagens que têm nas ‘selfies’ que tiram com filtros.