26 set, 2019 - 00:23 • Maria João Costa (Renascença) e Lucinda Canelas (Público)
Chegou há quatro meses à direção do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém e não lhe faltam ideias para valorizar os espaços e a programação do conjunto mais visitado da Direção-Geral do Património Cultural (DGPC). Quer obras de conservação na fachada sul e no claustro e um programa de exposições. E gostava que os portugueses pagassem (e esperassem) menos para visitar estes dois monumentos património mundial.
Foi diretora dos museus Grão Vasco e Nacional de Arte Antiga, passou pela Casa da Música e esteve à frente da Casa das Histórias Paula Rego, em Cascais. Entre 2012 e 2015 integrou os conselhos de administração do Centro Cultural de Belém (CCB) e da Fundação de Arte Moderna e Contemporânea — Coleção Berardo, cujo museu, diz, faz falta ao país. Dalila Rodrigues é desde 14 de maio a diretora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém, em Lisboa, dois monumentos património mundial que, com 1,6 milhões de entradas por ano, asseguram um terço do total de visitas dos 23 equipamentos da Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC).
Historiadora de arte e professora universitária, Dalila Rodrigues veio substituir Isabel Cruz Almeida, que ocupou o cargo durante 35 anos. Nesta entrevista, que será emitida na Renascença esta quinta-feira, depois das 13h00, fala das estratégias que tem para cativar o público nacional, na possibilidade de vir a cobrar entrada na igreja do mosteiro e das obras de conservação urgentes. Diz ainda que é preciso rever a natureza dos eventos privados que se fazem nos dois espaços e garante que alguns dos tesouros artísticos do mosteiro hão de voltar, em exposições temporárias.
Quando o seu nome foi anunciado, há quatro meses, disse que só falaria quando tivesse o programa delineado. Quais são as três prioridades para estes monumentos que são património da humanidade?
São mais ou menos óbvias: a conservação dos dois monumentos, a gestão do acesso, já que estão sob forte pressão turística, e, por último e naturalmente, a programação de actividades, que tem duas perspetivas matriciais: a necessidade de enriquecer a visita e a de devolver os dois monumentos aos portugueses.
Que diagnóstico faz da actual situação nos Jerónimos. A anterior diretora falava num “problema gravíssimo de recursos humanos e de segurança”. Concorda?
A situação tem vindo a melhorar. Em agosto recebemos os PREVPAP [funcionários abrangidos pelo Programa de Regularização Extraordinária dos Vínculos Precários na Administração Pública]. Quando a senhora ministra me convidou, e logo nas primeiras conversas que tive com a diretora-geral do património, foi muito claro que era necessário dotar os dois monumentos de meios. Os recursos humanos são uma área prioritária quando se fala de reforço de meios.
De quantos vigilantes dispõe num turno regular? De quantos precisaria?
Além deste reforço de agosto, preciso de pelo menos mais cinco. Na Torre de Belém e nos Jerónimos somos 20. Isto incluindo eu, que não faço parte do quadro de pessoal, já que sou professora [no Politécnico de Viseu e na Universidade de Coimbra] e o meu quadro é outro. Vinte são absolutamente de menos. Tanto na componente de técnicos superiores — neste momento há dois — como na de vigilantes. Mas é difícil indicar um número ideal. O que é necessário é definir com muita clareza o programa de actividades e só depois alocar os recursos humanos.
As exposições que estão hoje nos Jerónimos são muito pouco desafiantes para quem o visitou mais do que uma vez. O que é que tem previsto nesse plano?
Não posso concordar mais. Trata-se de duas exposições temporárias que estão [instaladas] há mais de dez anos e isto diz tudo. Só ainda não foram desmontadas porque uma frente de trabalho com novas propostas não pode, apesar de tudo, privar o visitante de alguma informação [no imediato]. Uma das exposições é dedicada a Alexandre Herculano e a outra desempenha, com insuficiência e até algumas incorreções científicas, as funções de contextualização do monumento. Mas a conservação é prioritária porque, diferentemente de um museu, um monumento é uma estrutura arquitetónica. Tem de estar conservada com todo o rigor.
Os monumentos não podem ser vistos como fonte de receita, têm de ser vistos como grandes realizações da humanidade que nos permitem rememorar um passado. Estruturam o território, são ícones identitários. Enquanto um museu vive essencialmente das suas coleções, um monumento não tem conteúdos. Quando foi secularizado, em 1833, um ano antes da extinção das ordens religiosas e da amortização dos bens da igreja, o Mosteiro dos Jerónimos foi despojado dos seus tesouros artísticos. A Torre de Belém também está despojada das suas funções de proteção da barra do Tejo. Temos de os apresentar num estado irrepreensível.
Vem à memória recente o incêndio da Notre Dame. Jerónimos e Torre de Belém estão atualizados em termos de medidas preventivas?
É outra prioridade da tutela. Temos conversado sobre isso. Vamos atualizar e ampliar estudos de impacto. A revisão das estruturas é permanente. A DGPC tem a conservação e o restauro centralizados, mas cada monumento e museu tem um arquiteto responsável. O nosso, o Ângelo Silveira, tem sido o meu parceiro diário. É ele que coordena essa área e os trabalhos de conservação que estão em curso e de forma sistemática nos Jerónimos desde 2012.
Em 2017, uma auditoria aos Jerónimos e à Torre de Belém revelou desvio de dinheiro das bilheteiras e outras irregularidades, conduzindo ao afastamento de funções de 11 funcionários, muitos deles despedidos, e a uma investigação do Ministério Público. Este cenário preocupou-a à chegada?
Não. Felizmente essa questão, se não está já resolvida, está em vias de resolução. Tive uma enorme vantagem – quando cheguei, a 14 de maio, as bilheteiras já tinham sido transferidas para o Museu Nacional de Arqueologia. A gestão integrada deste conjunto arquitetónico é uma prioridade e é nesse sentido que temos estado a trabalhar. Tenho uma experiência de trabalho muito frutuosa com o director de Arqueologia, assim como com o cónego José Manuel Santos Ferreira. Nesse sentido há que dizer que é preciso uma intervenção fortíssima no claustro e que não é possível manter a fachada sul, virada para a Praça do Império, sem uma intervenção de conservação urgente.
É para avançar quando?
O mais rapidamente possível. Há um compromisso da tutela no sentido de que as verbas sejam [para ali] canalizadas. Naturalmente, o Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém têm também um potencial mecenático incrível. Como são dois monumentos com grande visibilidade, as solicitações são diárias. O serviço vai receber agora uma nova técnica superior cuja finalidade é auxiliar-me nesta frente. A nossa equipa é pequena, mas com uma enorme generosidade. Quando iniciei este percurso [no património] em 2001, no Museu Grão Vasco, também éramos 20. Parece um regresso às origens.
Com o novo regime de gestão de museus e monumentos, os diretores terão agora maior acesso aos recursos gerados e maior autonomia, algo que sempre defendeu. Este é o diploma de que precisa para gerir melhor o Mosteiro e a Torre?
Não é gerir melhor, é passar a gerir. Os dois monumentos têm aproximadamente 1,6 milhões de visitantes por ano — representam mais de 30% dos totais nacionais de visitas [na DGPC] e geram sete milhões de euros. A despesa é obviamente ínfima, dada a magreza dos recursos disponíveis. Ora, este decreto-lei, ao definir a possibilidade de reter no serviço parte da receita proveniente não apenas do mecenato e do aluguer de espaços, mas também da bilheteira, vai finalmente permitir aos diretores libertarem-se da morosidade e da dificuldade de obter respostas imediatas [da DGPC] para problemas prementes. Obviamente, há também o princípio da redistribuição da receita que o diploma acautela e que neste momento é um drama para mim [risos]. Não seria um drama se eu estivesse, por exemplo, no Museu Nacional de Arte Antiga (MNAA)…
Mas não está. A Torre de Belém e os Jerónimos são a galinha dos ovos de ouro da DGPC e têm, por isso, uma responsabilidade acrescida na garantia deste princípio de solidariedade para com os outros museus e monumentos. Gostaria de ter ainda mais autonomia na gestão de receita?
O decreto-lei não está fechado, acautela apenas os princípios gerais. Paralelamente, foi nomeada uma comissão cuja finalidade é encontrar [um modelo definitivo], através de uma auscultação rigorosa [dos profissionais do sector]. Eu já fui entrevistada e tive a oportunidade de passar um quadro de preocupações, designadamente a necessidade de pensar a frente da conservação, que requer uma grande disponibilidade de recursos. Há esse entendimento da tutela. A um museu não ocorre expor coleções em mau estado de conservação. Porque é que se permite oferecer à visita e manter património da humanidade em condições não-irrepreensíveis?
Em quanto estão orçadas as obras no claustro e na fachada sul?
Ainda não estão orçamentadas. Mas o World Monument Fund (WMF) tem estado presente desde 2012 e tem sido um parceiro fundamental. Gostaria de prolongar essa colaboração.
Vai apostar nessa angariação de mecenato com o WMF?
Com e paralelamente. O Mosteiro dos Jerónimos e a Torre de Belém são muito desejados, embora a Torre seja incomparavelmente mais requisitada para toda a sorte de eventos. Chega a ser delirante…
Dê-nos um exemplo delirante.
Já nos perguntaram quanto custa alugar a Torre de Belém para um pedido de casamento. Na era do evento... o entretenimento quer substituir, ou confunde-se, com a cultura. Há uma permanente solicitação dos dois monumentos para fins que os desviam da sua função primordial.
É a favor do aluguer dos espaços para fins privados?
É necessária uma disciplina e uma reorientação nos eventos.
O valor para o claustro não está contemplado no decreto-lei que regulamenta os alugueres.
Não, não está. O Mosteiro dos Jerónimos não tem disponibilidade para acolher eventos como jantares. Isso ainda está contemplado para a Torre de Belém, que também não tem condições para o fazer sem atropelo das visitas e de um plano de actividades. Já pedi, aliás, que fosse retirada esta oferta. No entanto, cabe sempre ao director e à tutela aceitar ou não os eventos.
A Torre de Belém é hoje solicitada com uma média de três vezes por semana para ser iluminada. No dia 27, o Belenenses comemora assim o seu centenário e eu confesso que tive até bastante gosto em dar um parecer positivo. É um ícone identitário, [o seu uso para este fim] tem a ver com a função social do património, há ali uma relação [entre a torre e o clube]. Já o Rock in Rio, por exemplo, pode ser feito noutro lugar. Esse acontecimento, gostava de me demarcar, estava fechado à minha chegada.
Utilização de espaços para acontecimentos de âmbito cultural? Sim. Outro tipo de eventos? O mais possível, não. Eventos com recorte comercial, mas que são acontecimentos culturais, como o lançamento de livros e discos, com certeza.
Está prevista a reorganização interna da visita nos Jerónimos?
As prioridades estão bem definidas em articulação com a tutela. Tem havido um diálogo permanente com a ministra e com a diretora-geral do património. A loja vai sair do espaço onde está – na sala ao cimo da escadaria monumental e que tem valores patrimoniais que têm de ser apresentados na visita — e passar a ocupar a antiga livraria do convento, um espaço que dividirá com uma livraria internacional. A Sala do Capítulo, que foi concluída já no final do século XIX e com alguns remates no século XX e que acolhe o túmulo de Alexandre Herculano, tem as características ideais acústicas e de organização do espaço para ter uma programação permanente. Obviamente, o território matricial dessa programação vai ser a história da arte porque é necessário entender o monumento.
O programa com uma conferência por mês, que começa a 6 de janeiro, vai centrar-se também nas áreas da história da arte e do património. Trará autores e investigadores que têm obra publicada e que se têm dedicado aos dois monumentos. E também haverá música. Tudo para garantir o regresso dos públicos nacionais aos dois monumentos, preferencialmente depois das 18h30.
O antigo Refeitório vai ter uma componente expositiva. Estamos já a trabalhar com o Joaquim Oliveira Caetano, diretor do Museu de Arte Antiga, no sentido de fazer uma grande exposição assinalando a morte de D. Manuel I, uma exposição de regresso ao mosteiro de grandes obras…
Como por exemplo…
Ainda não temos isso decidido, mas obviamente que eu gostaria de ter desde a Bíblia dos Jerónimos à Custódia de Belém, dos paramentos às pinturas do Frei Carlos, mas não me atrevo… Sei que temos de garantir condições de visita ideais. Essa exposição far-se-á no final de 2021.
Torre de Belém e Jerónimos precisam de mais visitantes?
Creio que estamos no limite. Falo em 1,6 milhões para o Mosteiro e para a Torre, mas não estou a contar com a igreja. Há dias fizemos uma contagem dos públicos. Em agosto, à terça-feira, quando em Lisboa estão ancorados três cruzeiros, a igreja é procurada por dez mil pessoas por dia — é uma loucura. Comecei a condicionar o acesso. A cada 20 minutos entram 200 pessoas. Segundo um estudo realizado em 2011, a igreja acolhe três vezes mais público do que o mosteiro. Este acesso à igreja é gratuito, uma situação em relação à qual tenho sentimentos mistos: por um lado o edifício está aberto ao culto; por outro, tanto o senhor prior como eu, na perspetiva patrimonial e social…
… está a defender que a entrada na igreja seja paga?
É uma questão que tem de ser decidida pelo Ministério da Cultura e pelo Patriarcado. O senhor prior dos Jerónimos tem uma ação social muito intensa e com muito mérito e nós, do ponto de vista patrimonial, temos necessidade de valorizar e requalificar.
Qual seria para si o valor de entrada aceitável na igreja?
O Mosteiro tem uma taxa de dez euros e a Torre de seis. Penso que a Torre devia ter um preço mais elevado para a procura turística mantendo, depois, a gratuitidade para os públicos escolares e outros (jovens, investigadores, desempregados) e um bilhete reduzido para públicos nacionais [em geral]. Façamos uma conta simples: se a igreja acolher cinco a seis milhões de visitantes ano e se cada um contribuir com dois euros — um para a dimensão social, um para a patrimonial — estamos a falar de 10, 12 milhões de euros.
Muitos portugueses visitam uma vez na vida os Jerónimos e a Torre de Belém, geralmente na infância ou na adolescência. Como se combate esta ideia do “já vi uma vez, está visto”?
Os públicos nacionais têm vindo a aumentar – duplicou entre 2006 e 2018, passou de seis para 12% - mas é ainda um valor inexpressivo. É fundamental gerir o acesso – se o público nacional se vê afastado pelo preço do bilhete e os turistas priorizam não o valor da entrada, mas o tempo de espera, é fundamental criar formas de os portugueses acederem ao monumento sem terem de enfrentar as filas dos turistas.
Filas diferentes para portugueses e estrangeiros… Os preços também seriam diferentes?
Sim. Propus à tutela que se praticassem descontos significativos para públicos nacionais. Mas não quero falar em valores porque estas modalidades, tal como as filas separadas para nacionais e estrangeiros, são um assunto que está ainda em estudo, não sei se será ou não possível.
Integrou o conselho de administração do CCB, teve assento no da Fundação Berardo. Como vê esta polémica? Lisboa precisa do Museu Berardo em Belém?
Lisboa precisa daquela coleção de arte contemporânea. Tenho a certeza de que serão encontradas as melhores soluções para que se mantenha.
O Mosteiro dos Jerónimos celebra as glórias dos Descobrimentos. Faz sentido o projeto da Câmara de Lisboa para a criação de um Museu da Descoberta com tudo o que já há na cidade para os celebrar?
Não faz sentido tal como foi anunciado. As principais obras que confeririam legitimidade a um ato dessa natureza encontram-se em museus que necessitam de reforços do ponto de vista financeiro e humano. Não precisamos de um discurso de glorificação, mas de o repensar. Não tenho problema nenhum com a palavra “Descobrimentos”, mas é necessário revisitar esse acontecimento histórico à luz de outras perspetivas.
Já passou por vários museus. Para uma diretora que é também historiadora de arte, um monumento pode ser tão desafiante quanto um museu?
Tão ou mais. O facto de não ter as coleções, mas de elas existirem, dispersas por museus, é muito estimulante para um trabalho de articulação permanente com outras instituições. O Mosteiro dos Jerónimos alimentou coleções na Torre do Tombo, no Museu de Lisboa, em Arte Antiga… É incomensurável o valor das obras que fizeram parte do Mosteiro. A Igreja tem ainda as artes aplicadas. Além disso o monumento, ao contrário do museu, permite-nos ver as artes em contexto.
Mas para que isso aconteça tem de contar com muitos empréstimos…
É verdade. Mas quando a programação tem uma componente expositiva o regresso temporário das obras é possível.
Por onde gostaria que qualquer pessoa começasse a sua visita nos Jerónimos?
Entraria pela escadaria principal, passaria pela Sala dos Reis, o espaço que é hoje a loja e que deixará de o ser, e acederia ao claustro pelo piso superior. Não faria a visita a pensar na cronologia, mas no efeito visual, cenográfico, do conjunto. O impacto é absolutamente exaltante. Este é o percurso que eu faço todos os dias.