28 set, 2019 - 01:29 • José Alberto Lemos, em Nova Iorque
Sim, já todos sabemos que Madonna vive em Lisboa há alguns anos, que se apaixonou pelo fado e por música africana e brasileira.
Já todos sabemos que se tornou uma grande admiradora de Amália e conviveu e cantou discretamente em algumas casas de fado com Celeste Rodrigues, a irmã de Amália recém-falecida.
Já todos sabemos que essa descoberta musical lhe abriu novos horizontes e, nas suas próprias palavras, lhe mudou a vida.
Era por isso previsível que o novo espetáculo que acaba de estrear em Nova Iorque refletisse esses novos caminhos musicais e essa nova experiência. E reflete, de facto.
Mas essa previsibilidade não atenua a emoção de ver Madonna, talvez a figura mais icónica da pop, a cantar o “Fado Pechincha” de Celeste Rodrigues, a coladera “Sodade”de Cesária Évora, ou acompanhar o grupo Batuke de Cabo Verde num teatro de Brooklyn perante 2100 fãs incondicionais que vibraram do primeiro ao último minuto.
Tudo acontece numa espécie de segunda parte, sem intervalos, em que após um conjunto de temas do novo álbum muito na linha da sua música habitual, entram pela plateia dezenas de mulheres cabo-verdianas a tocar os seus batuques, todas vestidas de branco e criam na sala um ambiente diferente.
Percebe-se de imediato que os ritmos africanos não são propriamente o tipo de música a que os seus fãs estão habituados. Há quase um “choque cultural”, mas a imagem daquelas mulheres, a força das suas batidas, e o irresistível balanço dos seus ritmos depressa “reconquistam” o público.
Madonna canta em uníssono com elas, que dominam agora por completo o palco. Estão sentadas em semi-círculo, tocam os seus batuques e exprimem com toda a energia a beleza da música cabo-verdiana. Nas enormes telas que enquadram o palco passam imagens de Cabo Verde, caras femininas marcadas pela dureza da vida, mas também pela alegria com que sabem enfrentá-la. É uma explosão de África em Brooklyn.
Madonna explica depois como se deixou enfeitiçar pela música cabo-verdiana ao ver em Portugal aquele grupo. Descobriu a sua beleza, mas também a sua qualidade intrínseca. E avança para o “Sodade”, de Cesária Évora, cantado já em registo melancólico, tranquilo, como recomenda o tema.
Logo a seguir é Portugal que entra em cena. Madonna pergunta à audiência se sabe o que é o fado, se conhece o significado da palavra. Há meia dúzia de vozes que mostram saber do que se trata. “Fate”, “destiny”, ouve-se aqui e ali. Menciona Amália e Celeste Rodrigues, informa que ainda cantou com a última, que morreu recentemente.
Mas tem ali o neto, Gaspar, um jovem de 16 anos , “feitos ontem”, que sabe tocar guitarra e vai acompanhá-la no “Fado Pechincha”. Mandam os nossos ouvidos de português reconhecer que a performance não foi brilhante. Falta a Madonna, naturalmente, o domínio da língua e a “alma” inerente ao fado.
A perceção (quase) generalizada de que o fado é uma música triste e deprimente, sem ritmo, e mais declamada do que cantada, terá saído reforçada junto dos fãs presentes em Brooklyn. Vale que o fado não foi interpretado na totalidade, Madonna limitou-se a algumas quadras que terão durado no máximo dois minutos.
As referências a Portugal não ficaram por aqui. O concerto prosseguiu com alguns temas de inspiração latino-americana, um dos quais chamado Medellin, tocados num enquadramento de imagens de Lisboa, dos azulejos e de ruas de bairros históricos da capital. A certa altura ainda se referiu ao Brasil, mas não se ouviu nada que remetesse para a música brasileira.
Mas se a diva da pop não domina o português, aparentemente também não vai ter mais tempo para aprender. Porque num registo confessional que adotou durante todo o espetáculo, explicou a razão pela qual tinha ido viver para Lisboa.
Tornou-se uma “soccer mom”, isto é, uma daquelas mulheres americanas cuja única ocupação é ser mãe e “motorista” dos filhos para onde quer que eles tenham de ir durante o dia. No caso de Madonna, que se diz uma fã de “soccer”, o futebol europeu, o filho queria treinar numa boa escola e escolheu Portugal.
Mas Madonna confessa hoje que “se sente só” em Lisboa, porque “não tem amigos”. Um drama comum a (quase) todos os expatriados. Daí que deixe antever que a sua saída de Portugal possa estar para breve.
Para já, vai andar em tournée até maio do próximo ano com este espetáculo Madame X, o nome do último álbum. Um espectáculo, muito mais do que um concerto, que abriu na semana passada a sua tournée internacional aqui em Nova Iorque e que tem aspetos pouco comuns.
O primeiro é que Madonna escolheu um teatro em Brooklyn em vez de uma grande sala em Manhattan. Para além do significado que possa ter para Brooklyn como o bairro cada vez mais in de Nova Iorque, os 2100 lugares da Academia de Música de Brooklyn são pequenos para os padrões americanos. Isso permite-lhe fazer um espetáculo bem mais intimista, inviável em locais gigantescos como o Madison Square Garden, com os seus 13 mil lugares.
E Madonna tira, de facto, partido dessa proximidade com o público. Ela está ali, mesmo ao pé dos fãs, interpela-os diretamente, pergunta-lhes os nomes, entra pela plateia, senta-se ao lado de um e conversa com ele dois ou três minutos. Quer saber como se chama, de onde veio, o que faz.
Gera uma intimidade em que o mito se torna realidade. Parece espelhar-se ali uma vontade genuína de regressar a casa, ao seu ambiente, de (re)conhecer os seus compatriotas depois de uma ausência prolongada. Matar saudades, no fundo. E que música exprime melhor esse sentimento do que o fado? Ou as coladeras cabo-verdianas? São afinal as saudades de Madonna a exprimirem-se no “Sodade” de Cesária Évora.
Uma intimidade que ela quer gerar sem o incómodo dos telemóveis. À entrada todos os telemóveis são desligados e enfiados nuns saquinhos invioláveis que só abrem à saída. Obrigam-se assim as pessoas a prestar atenção ao que se passa no palco em vez de estarem a olhar para o telemóvel ou obcecadas a tirar fotos ou fazer videos.
E já agora, já que ninguém pode tirar fotos, é Madonna que o faz. Tira um instantâneo a si própria, numa polaroide, e faz logo ali um leilão da foto. Alguns fãs, certamente conhecedores do truque, já vinham munidos com cash suficiente para disputar o troféu. Arrematado por 2500 dólares. Sim, dois mil e quinhentos dólares em cash, por uma selfie de Madonna tirada no concerto onde ninguém pôde fazer fotos. Uma fonte de receita adicional para a diva. Sem impostos.
O outro aspeto pouco comum é que o espetáculo tem início marcado para as 22h30, um “late night show” para os padrões americanos. E só começou pelas 23h00. É duvidoso que em Manhattan houvesse salas convencionais disponíveis para horários tão tardios. Foram mais de duas horas ininterruptas de concerto a meio da semana de trabalho.
Duas horas que começaram com uma citação de James Baldwin: “os artistas estão aqui para perturbar a paz”. Se entendermos paz como o “status quo”, a citação encaixa bem naquilo que Madonna veicula durante quase todo o espetáculo. Sobre imagens das tragédias americanas atuais — violência policial, tiroteios fatais frequentes, pobreza crescente, ameaças a liberdades dadas como adquiridas há muito, separação de famílias que tentam entrar no país, tentativas de fechar o país à imigração, desprezo pelo ambiente — Madonna surge como a nova militante das causas que entende como justas.
Ela regressou a casa para agitar consciências e lutar contra os ventos que sopram no país. “I rise”, eu ergo-me contra tudo isto, diz ela num tema com o mesmo título. E espera que o seu anunciado ativismo contagie aqueles que a ouvem. Serei gay, africana, pobre, criança, islâmica, mulher, se cada uma delas for discriminada, humilhada, atacada, odiada, violada. É a expressão da solidariedade que a nova ativista quer agora veicular.
E não é só a música. É a crueza de algumas imagens, o sombrio de alguns cenários ou de algumas coreografias, o tom de algumas proclamações, a determinação corporal de algumas danças, que nos remetem para esse universo de alerta para os caminhos trilhados pelo país. Tudo servido com o máximo de profissionalismo e beleza, naturalmente.
Aos 61 anos, Madonna está em grande forma. Mais de duas horas de espetáculo com uma energia que nada fica a dever aquela que evidenciou na tournée “Like a Virgin”, quase há trinta anos.
A diva regressou, pois, a casa para lutar contra aquilo que entende serem as injustiças na América. É a reconquista dos seus compatriotas, a reconciliação após a ausência. Com um sabor lusófono bem acentuado nos lábios.