19 fev, 2020 - 18:54 • Maria João Costa
Álvaro Siza Vieira começou por explicar à plateia: “como entenderão, não falarei de literatura”. O arquiteto português com mais prémios internacionais confessou ao público do Festival Correntes d’Escritas que é “incompetente” na matéria. Mas era o convidado de honra da conferência de abertura da 21.ª edição do festival literário organizado pela autarquia da Póvoa de Varzim.
O arquiteto admitiu, no entanto, que a poesia o influencia no “rigor das palavras”. “Cada palavra tem de estar ali e não pode ser outra. Isso tem tudo a ver com a arquitetura. Aprende-se muito com a poesia, o grau de exigência que se põe é útil à arquitetura.”
O tema da conferência de abertura era “As relações da arquitetura com as outras artes” e Siza Vieira voltou a fazer outro paralelismo entre a sua arte e a literatura ao lembrar um livro que leu, do qual não se lembra do titulo, em que o autor fala da forma como as personagens vão ganhando autonomia. “Quando li isso, pensei: 'mas isto acontece também com a arquitetura'. Em dada altura, o projeto começa a correr. Os edifícios, como animais, ganham vida própria. Se se asfixia a vida desse animal, ele perde-se, mas se se dá toda a liberdade, ele torna-se um monstro."
Siza voltou a fazer outra ressalva: “Não falarei da arquitetura porque senão isto acabaria numa lamúria”. Perante o auditório cheio do Cine-Teatro Garrett, o arquiteto que, na sua juventude, desejou ser escultor acabou, contudo, a falar da arte que é a sua. Admitiu que tem “mais trabalho fora do que em Portugal.”
Álvaro Siza Vieira falou da “abertura de outros continentes” à arquitetura. Numa conversa moderada pelo jornalista José Carlos Vasconcelos, o arquiteto do Porto sublinhou que “ultimamente, e com a crise” começou “a ter mais convites da China, Taiwan e Coreia do Sul”.
Na China, explicou Siza, tem hoje um projeto de um “museu de 135 mil metros quadrados em Xangai”. “Ia tudo muito bem, mas, simplesmente, veio o coronavírus e os trabalhos estão suspensos” explicou.
Siza Vieira lamenta a situação: "temos tido sempre trabalho continuo. Realizam-se e pagam, o que vai sendo raro.”
O arquiteto, de 86 anos, diz que na China o tratam "muito bem”, mas não tem viajado para lá. Recordou que, nos últimos anos, voou mais de 10 vezes para a China, mas cansou-se: "Cheguei a um ponto em que pensei 'estou a matar-me e ainda não quero. Vai o Castanheira!'” [um arquiteto com quem trabalha]
Sobre outros projetos internacionais, Álvaro Siza Vieira falou ainda sobre a torre que está a fazer em Nova Iorque. “Acho um milagre”, exclamou Siza, que se considera um homem com “muita sorte” por lhe ter sido entregue um lote estreito para a construção de um edifício de 38 pisos.
Tem “uma proporção muito boa” garante, o prémio Pritzker que explica que o projeto “correu bastante bem” e conclui: “É mais fácil fazer um projeto em Nova Iorque do que no Porto”, porque "as regras estão muito facilitadas. Se há alguma dúvida, telefona-se para o departamento e dizem 'venham cá no dia tal' e esclarece-se!”
Siza Vieira lamenta a “carga burocrática impensável e terrível” que há em Portugal e recorda os tempos em que começou a exercer a profissão, quando “os regulamentos eram mínimos”. Hoje continua a trabalhar porque tem "de viver”.
"A arquitetura sem prazer é insuportável” e, por isso, “tem de se inventar o entusiasmo” para com a profissão.
"Agonia" é a palavra que o arquiteto Siza Vieira usa para caraterizar o estado da arquitetura portuguesa. Questionado pela Renascença, no final da conferência que deu na Póvoa de Varzim e enquanto fumava um cigarro, o arquiteto explicou que não tem “medo de fazer concursos. Uns ganham-se, outros perdem-se”. No entanto, "nas condições em que são feitos” já não os quer.
Siza explicou que “nos concursos atualmente em Portugal, há uma cláusula que diz que um dos critérios é o mais barato e há gente a trabalhar com honorários impossíveis”. Do alto da sua experiência, Siza declara: “Com uma cláusula assim, eu não brinco.”
O arquiteto que influenciou toda uma corrente conta também que ganha concursos que “depois, não são executados.”
Com frustração, lembra um caso recente de uma ponte pedonal sobre o Rio Minho, em que ficou em primeiro lugar no concurso. “Não queria fazer o concurso, mas fui. O prémio era miserável e acontece que ganhamos. O grande prémio era construir a ponte. Quando fomos discutir o assunto, disseram-nos, tranquilamente, que tinha sido cancelado o concurso, por um erro administrativo. Ficou num zero e num largo prejuízo, sobretudo para o engenheiro a quem disse que não queria nada. Eu só gastei um bocadinho de massa cinzenta e, como a massa cinzenta não vale nada, não quero receber nada.” Mais tarde, Siza soube que o projeto foi entregue aos segundos vencedores do concurso, uma equipa espanhola, por “ser mais barato”.
Aos 86 anos, ainda no ativo Siza confessa que o que o “move a continuar” é, primeiro, ter de “ganhar a vida”. Segundo admite, gosta de “fazer arquitetura”. “Não vou dizer que é uma paixão, porque paixões têm-se por gente. Fazer o que se gosta é importante para o bem-estar.”