15 mai, 2020 - 06:37 • Maria João Costa
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Confessa que “estava a precisar de desafios como ator”, mas não imagina o que pode significar ser visto em países onde nunca foi nem sonha ir. Nuno Lopes vai protagonizar a nova série de Álex Pina, o famoso realizador de “A Casa de Papel”. Em “White Lines”, Nuno Lopes veste a pele de um segurança da noite de Ibiza que odeia música techno.
Numa série falada em inglês e espanhol, o ator português admite a dificuldade que foi representar numa língua que não trata por tu. Diz que a série “tem tudo aquilo que nós não podemos fazer agora”.
Em entrevista ao programa “Ensaio Geral” da Renascença, Nuno Lopes lamenta a situação que a classe artística vive e denuncia que há quem esteja a passar fome.
Como foi abraçar este projeto de fazer uma série televisiva?
Acima de tudo houve, logo, uma grande mudança que foi estar a fazer uma série com o Álex Pina. Apesar de ter tido a oportunidade de fazer várias coisas ao longo do meu percurso, ultimamente o que tenho filmado tem características muito diferentes desta série. A escrita do Álex Pina é muito exterior. É quase shakespeariana, no sentido em que os personagens dizem muito o que é que estão a pensar. Estão constantemente a dizer "eu sinto-me assim". Normalmente, nos trabalhos em que tenho participado, por exemplo, com o Marco Martins, os personagens escondem tudo o que sentem e raramente expressam o que estão a sentir. Nesse sentido foi um estilo muito diferente de representação e um grande desafio.
Como é que carateriza esta série, que história conta?
Esta série é muito difícil de definir e isso é uma coisa boa, porque a torna muito única. Acho que nunca vi nenhuma série com este estilo. Passa-se em dois tempos. É uma série sobre um crime, um policial, uma tragédia. Conta a história de uma irmã inglesa de um DJ desaparecido nos anos 90, em Ibiza, e, 20 anos mais tarde, percebe-se que foi assassinado.
Ela vai para Ibiza tentar perceber o que se passou com o irmão. À partida, parece uma série mistério, de tentar perceber quem matou, mas depois tem um lado muito cómico. É uma série de ação. Há uma crítica e uma admiração a uma certa vida livre. A série é quase caleidoscópica.
Parece passar-se em dois mundos antagónicos.
Na verdade, há um lado muito cómico, porque é a história de uma rapariga que viveu a vida toda em Manchester, uma cidade cinzenta, e era bibliotecária e, de repente, vê-se no meio de Ibiza, no meio do mundo das festas de eletrónica, das drogas, das orgias. Essa vida não tem nada a ver com o seu passado. Ela descobre coisas sobre ela, por ser confrontada com esse novo mundo.
Quem é o Boxer, o seu personagem? Como o carateriza?
O Boxer é um chefe de segurança de uma das famílias que tem mais clubes em Ibiza, e uma das mais ricas de Ibiza. Era uma família que estava muito próxima do Axel, o DJ que morreu e o Boxer vai investigar o que se passou e quem o matou. Os personagens do Álex Pina têm sempre vários lados. Não têm só o lado A, têm muitas vezes o lado B, C e até um D. E o Boxer também é isso. Não estou a fazer nenhum “spoiler”, porque isso percebe-se logo na primeira cena em que entro.
Aparece logo no primeiro episódio?
Vamos vê-lo logo no primeiro episódio. A casa do Boxer é dentro de uma discoteca, ele é uma figura icónica de Ibiza, é um segurança, trabalhou na noite a vida toda e a primeira frase que digo, assim que acordo ao som do techno, é: "Odeio esta música!" (risos). Isso revela muito de quanto o personagem é diferente daquilo que se espera. Tem um lado muito mais sensível e culto que não seria esperado numa figura destas. A série, como a maioria das séries do Álex Pina, “La Casa De Papel” ou “Vis a Vis”, normalmente têm um protagonista, mas na realidade o protagonismo é dividido por três ou quatro personagens, e eu sou um deles.
Como foram as rodagens, em diferentes geografias, o ambiente de equipa?
Foi ótimo, acima de tudo por esse desafio, pela maneira diferente de criar histórias que o Álex tem. Mesmo a própria narrativa, não há só um protagonista e também não se passa só num tempo. Às vezes, até é muito difícil ler o guião, porque muitas vezes as cenas não se passam numa época, há um diálogo e depois há uma cena de outra época. Muitas vezes a cena desta época está em diálogo com a cena anterior. Estamos a dizer uma cena, e temos de ter a consciência de que a seguir há um corte para 20 anos atrás e que isso faz parte da cena que estamos a fazer. Nesse sentido é um desafio muito grande e eu tinha muita vontade de trabalhar desta maneira nova para mim. Estava a precisar de desafios como ator e foi com uma alegria enorme que recebi a notícia que iria participar na série.
Como foi trabalhar com duas línguas?
É sempre complicado representar numa língua diferente da nossa língua mãe, porque não temos uma relação emocional direta com as palavras. Eu já disse “avô” milhares de vezes, mas se disser “abuelo” ou “grandfather” não tenho qualquer ligação emocional à palavra, é como dizer “frigorifico”.
Portanto, é sempre complicado para um ator encontrar numa palavra que não é da sua língua mãe, a mesma emoção que tem na sua própria língua. É sempre complicado representar noutra língua. É sempre, de certa maneira, frustrante, pelo menos para mim, porque sentes que ficas sempre aquém do que poderias fazer se fosse em Português.
Foi muito exigente?
Sim, porque neste caso não era uma língua, mas sim duas. A série é falada 70% em inglês e 30% em espanhol e o meu personagem fala as duas línguas, e muitas vezes na própria cena. A questão é que, quando tu começas a pensar noutra língua, a tua cabeça também pensa de maneira diferente, e isso é uma dificuldade e, ao mesmo tempo, é uma característica. Quando começas a trabalhar numa língua para fazer um personagem específico, só esse trabalho já te ajuda a entrar no mundo do personagem e naquilo que será o resultado final.
Como foi rodar uma produção desta dimensão para a Netflix?
Uma das vantagens de estar a fazer uma série internacional é que há mais dinheiro e, por causa disso, há mais tempo. Esta série, se fosse feita em Portugal, demoraria dois meses, dois meses e meio a fazer, no máximo! Neste caso estivemos a filmar seis meses. Podemos perder tempo. Há cenas de ação que levaram três a quatro dias a serem feitas, e isso seria impossível numa série portuguesa. Não tem a ver com talento ou desejo de fazer bem, tem a ver simplesmente com o facto de não haver dinheiro. Foram seis meses de rodagem, entre várias cidades como Madrid, Toledo, Maiorca, Ibiza e Manchester, embora a série se passe, basicamente, em Ibiza e Manchester.
Mas tem a noção que está a trabalhar para um público global?
Ainda não tenho muito bem a noção. A coisa mais parecida que tenho com isto foi a novela que fiz há 20 anos, no Brasil, que também foi vendida numa centena de países. Mas neste caso nem sequer tenho bem a noção do que vai ser, porque quando perguntei a alguns responsáveis na série onde é que ia passar, porque a série é falada em Inglês e Espanhol, e eu calculei que fosse passar em Inglaterra, América Latina e Espanha, o que me responderam foi: “à partida, não deve passar nem na China, nem na Coreia do Norte. No resto do mundo deve passar”, e isso foi um bocadinho chocante ouvir. É estranho, de repente, haver pessoas a conhecer o meu trabalho em países onde eu nunca fui e onde nem sequer irei. Claro que traz uma pressão, porque se correr muito bem o trabalho pode ser muito bom para ti, mas também se correr mal, é mau a nível internacional!
"Eu sou um privilegiado, mas há muitas pessoas da minha classe que estão neste momento em situação de fome, mesmo!"
Neste momento que vivemos de confinamento global, muita gente passou a consumir ainda mais este tipo de séries. Como vê esta série a ser exibida neste momento de pandemia?
Acho que este é o momento ideal para ver a série, porque é exatamente o oposto de tudo o que estamos a viver neste momento! É uma vida livre, onde as pessoas se tocam e beijam e há uma alegria de viver. É sobre o verão, o ir para a praia, sair à noite. Tem tudo aquilo que nós não podemos fazer agora. Eu comecei a ver agora uns episódios e é, de certa maneira, libertador vê-la neste momento.
Como é que tem vivido estes momentos? Como vê a atual situação de pandemia?
Vejo com grande preocupação os dias que estamos a viver, sobretudo com a minha classe que está numa situação horrível. A classe cultural em Portugal já é precária desde sempre, pior fica quando há uma crise e quando não temos sequer a condição de intermitentes, como há noutros países.
Os atores não têm sequer direito a subsídio de desemprego, significa que quando não estão a trabalhar, como agora, porque não podem, não têm como ganhar a vida.
Eu sou um privilegiado, mas há muitas pessoas da minha classe que estão neste momento em situação de fome, mesmo! É muito preocupante o momento que vivemos.
Diz que é um privilegiado, mas o seu trabalho também foi afetado.
Eu sou um privilegiado, como disse, mas ainda assim tive de parar um filme que estava a fazer com o Marco Martins. Voltamos para Portugal e, como as condições monetárias que a cultura tem nunca são grandes, estamos neste momento a perceber como é que podemos continuar.
Havia cenários construídos, viagens pagas com o pouco dinheiro que havia para fazer o filme. E vamos ver como podemos voltar a fazê-lo. Além disso tinha um outro projeto em França. Vai depender muito da abertura das fronteiras e de como será a evolução do vírus no mundo.
Tem saudades do palco?
Tenho sempre saudades do palco! Embora neste momento me esteja mais a desafiar filmar e esteja mais interessado, como ator, em explorar o meio cinematográfico e televisivo. Mas, tenho sempre saudades de voltar ao palco.