19 out, 2020 - 17:54 • Maria João Costa
Natália Pires foi durante os últimos 40 anos a guardiã das bobines onde estavam gravadas as cerca de 10 horas de entrevista do poeta e escritor Manuel da Fonseca a Amália Rodrigues. Na origem desta longa conversa estava a ideia da editora Arcádia em publicar uma biografia da fadista que nunca chegou a conhecer a luz do dia. Agora, sai em livro essa entrevista. “Amália nas suas palavras” é um documento com revelações inéditas sobre a vida de Amália.
No ano em que se celebra o centenário do nascimento da fadista e para assinalar o lançamento do livro com edição conjunta da Porto Editora e da Edições Nelson de Matos foram agora entregues ao Museu do Fado, em Lisboa, as bobines originais da entrevista.
Quando a editora Arcádia fechou portas, Natália Pires, então funcionária da editora levou consigo para casa as gravações. O, então, editor Nelson de Matos chegou a passar a entrevista para cassete, mas hoje as fitas estão bastante deterioradas. Em entrevista à Renascença, Manuel Alberto Valente da Porto Editora explica que nas bobines que estão em bom estado estão registadas as “três sessões” da conversa feita, quer na casa de Amália, em Lisboa, quer na casa de férias no Brejão, na Costa Alentejana.
O livro agora editado e que conta com prefácio de Rui Vieira Nery, apresenta a transcrição feita por Pedro Castanheira da entrevista que Manuel da Fonseca fez e onde também participou João Belchior Viegas, o agente de Amália Rodrigues. Para este trabalho ser concretizado, o músico Pedro Castanheira contou com o “apoio da Fundação Calouste Gulbenkian e do Museu do Fado”, indica Manuel Alberto Valente.
Para a diretora do Museu do Fado a entrevista tem uma importância “enorme”. Sara Pereira considera que todos os registos na primeira pessoa de Amália “desmistificam muitos dados que têm vindo a consolidar-se à volta da memória” da fadista. Esta entrevista, onde está também a voz do poeta Manuel da Fonseca nas perguntas “permiti ouvir livremente a voz de Amália”, aponta a responsável do Museu do Fado.
O museu que pertence à EGEAC, vê o seu espólio assim enriquecido com estas bobines de gravação e consolida o seu projeto neste ano do centenário Amaliano em que apostaram na “salvaguarda e digitalização de todo o acervo de Amália Rodrigues”. “No primeiro semestre de 2021”, diz Sara Pereira, estará disponível uma base de dados digital que reúne todo o acervo da fadista, “desde fonogramas, entrevistas, fotografias e manuscritos”.
Com uma vasta rede de parcerias, nomeadamente com a Fundação Amália Rodrigues e outros museus como o do Teatro e o do Traje, estão em preparação várias exposições sobre a carreia e vida da fadista que serão apresentadas no próximo ano.
Na entrevista agora transcrita, em que Manuel da Fonseca tenta perceber o que era o fado para Amália, sem que a fadista o consiga explicar, surge um conjunto de revelações, nomeadamente no que toca à infância difícil que viveu. Amália recorda, por exemplo, que ganhava, aos 12 anos, 2 escudos a passar a ferro e assume que na infância desejou por várias vezes morrer.
Pedro Castanheira que teve a seu cargo a missão de pôr por escrito as palavras de Amália fala da responsabilidade desta tarefa. Em entrevista à Renascença, à margem da cerimónia da entrega das bobines ao Museu do Fado, Castanheira faz questão de sublinhar que esta entrevista é feita “por um grande nome da literatura”, Manuel da Fonseca, “que nunca despe o papel de poeta e romancista para abraçar o papel de jornalista”.
É uma conversa em que houve “muito tabaco, muito álcool”, refere Manuel Alberto Valente que destaca o “à vontade” com que Amália surge no registo da entrevista. Para Rui Vieira Nery, o coordenador do grupo de trabalho do centenário de Amália, a fadista estava “no auge” da sua carreira quando deu esta entrevista. Este estudioso do Fado aponta ainda as diferentes visões do mundo “entre Amália e um escritor assumidamente comunista, como Manuel da Fonseca”, mas revela que se criou “uma empatia entre os dois” que gerou “uma conversa muito livre”.
Vieira Nery coloca mesmo em dúvida que à data da entrevista, 1973, ainda antes do 25 de abril de 74 que esta entrevista pudesse ter sido revelada devido à censura, na sonhada biografia que a editora Arcádia queria fazer.
“Ficamos a perceber muito melhor a visão que Amália tem de si própria, da sua arte e da sua carreira” refere Rui Vieira Nery que conclui que a entrevista “é um documento precioso” que tem quase um tom confessional da artista. O autor do prefácio acrescenta ainda que nesta conversa com Manuel da Fonseca, Amália “dá opiniões literárias, que numa entrevista formal não se atreveria a dar, porque era muito tímida e gostava de manter aquela ideia de que era muito inculta e analfabeta. Na realidade era exatamente, o contrário!”
Há também revelações do foro político, indica Rui Vieira Nery. Sobre o “perfil politico ideológico” de Amália discute-se no livro “de forma muito aberta a relação dela com o Estado Novo e Salazar. Fica-se a perceber também ao mesmo tempo, a extrema liberdade que sempre caraterizou Amália. Ela fazia o que queria, como queria, cantando o que queria”, aponta Nery que conclui: “Ficamos a perceber melhor o fenómeno, sempre tão complexo, de uma grande artista como a Amália, mas em primeira mão”.