22 out, 2020 - 07:32 • Maria João Costa
Chega esta semana às salas de cinema portuguesas a primeira longa metragem da realizadora Ana Rocha de Sousa, que arrebatou seis prémios no Festival de Cinema de Veneza. “Listen” tem por base histórias reais e nasceu a partir da notícia de um casal de emigrantes portugueses no Reino Unido que viu os filhos lhe serem retirados. Em entrevista ao programa “Ensaio Geral” da Renascença, a cineasta, que também fez carreira como atriz, diz que o que lhe interessa é o cinema que chega ao “coração das pessoas” e defende que o cinema de autor tem de ser apoiado pelo Estado.
Despertou para a história que conta no filme “Listen” a partir de uma notícia de uma família de emigrantes portugueses que viram as autoridades britânicas retirarem-lhes os filhos.
Foi chocante. Quanto ouvi a primeira notícia sobre isso, a minha reação foi: "isto não pode acontecer, não é possível!" E depois comecei a procurar informação sobre isso e é natural que existam casos em que, efetivamente, é importante existir essa separação para proteção das crianças, mas descobrir todo este tema sobre as adoções forçadas e que tem caraterísticas que mexem muito com conceitos elementares de direitos humanos. Quando ocorrem erros não revertem o processo, há muitas questões até relacionadas com a forma como a lei está escrita por ser demasiado subjetiva. Há abertura para que muitas avaliações ocorram de forma injusta.
Esta é a sua primeira longa metragem, como é que decidiu filmar esta história que parte de um episódio real
Só há uma forma de filmar isto, é com verdade, o que torna o processo muito pesado e doloroso, acima de tudo para os atores. Esse processo de dor começa logo no lidar com estas histórias e o peso da verdade que elas têm. Daí vem o respeito pela dor destas pessoas e a vontade de fazer um filme que seja o mais próximo possível dessa realidade. Muitas vezes estas famílias são obrigadas ao silêncio, sobre pena de prisão se não o fizerem e, portanto, é no respeito dessa dor que este filme foi feito.
É uma questão de defesa de direitos humanos? É esse o cinema que lhe interessa fazer?
A partir do momento em que percebi que o cinema também pode ter esta força e este lado de tentar transformar a vida para melhor, torna-se difícil voltar a uma perspetiva de cinema mais centrado numa expressão artística, unicamente. Creio que é muito difícil que o meu cinema não tenha uma perspetiva artística, mas este lado da verdade, de casos reais e de temas sensíveis acho que descubro com o “Listen”. É chamar a atenção para questões que são essenciais à vida das pessoas. É importante, para mim, essa questão de intervenção social. É o que me faz sentido, é o caminho.
Tem um percurso também como atriz. Nesta fase da sua vida não faz sentido estar à frente da câmara?
Faz sentido para mim não estar à frente da câmara quando estou atrás da câmara. Não é possível estar em dois sítios ao mesmo tempo. Sei que há muitos realizadores que o fazem e resulta, mas eu tenho dificuldade em compreender como é que se consegue fazer isto de estar atrás e estar à frente ao mesmo tempo. Uma coisa é um realizador que tem uma longa carreira, outra coisa é um realizador que está a começar e tem ainda muito que descobrir. É aí que me encontro. Tenho muito caminho para descobrir atrás da câmara.
Com todos os prémios que ganhou em Veneza com este filme, que é a primeira longa metragem, torna mais difícil e desafiante filmar a seguir?
Isto já me aconteceu com um filme que realizei na escola de cinema. A dimensão, acho que não nos pode assustar. É preciso manter a visão que já se tinha e, talvez, aproveitar portas que se abrem e não ter medo delas. Tentar seguir, sem medo, e também sem ficarmos com a visão toldada a acharmos que somos os maiores. Acho que é preciso ter algum cuidado com os prémios, porque há muita gente que não ganha prémios e que tem um trabalho com muito valor.
"Quando faço um filme, faço numa perspetiva artística, para chegar às pessoas e ao coração seu coração. Não numa perspetiva de rendimento do filme, mas sim de transformação de vidas e de trazer um sentido de alento, esperança ou mensagem"
Como vê a indústria do cinema?
Acho importante, quando se faz um filme, não estarmos a pensar em vendê-lo e como vendê-lo. Quando faço um filme, faço numa perspetiva artística e para chegar às pessoas e ao coração das pessoas. Não numa perspetiva de rendimento do filme, mas sim de transformação de vidas e de trazer um sentido de alento, esperança ou mensagem.
Nesta semana em que estreia o seu filme nas salas portuguesas, vimos os estudantes de cinema a protestarem à porta da Assembleia da República contra a transcrição para a lei portuguesa de uma diretiva comunitária sobre o cinema. Como vê o futuro do cinema português?
O cinema português tem uma história muito bonita. Depois dentro do meio existem grandes divisões do setor e isso são divisões que compreendo e tenho, às vezes, dificuldade em posicionar-me por compreender os lados.
Que lados são esses?
De um lado temos o cinema mais independente e de autor, que acho que é o que o Estado tem de garantir. É preciso fomentar o cinema de autor. É preciso garantirmos que os autores continuam a ter forma de trabalhar, porque não existe outra maneira de fazer cinema de autor, sem o apoio do Estado.
Claro que depois também há o lado da liberdade absoluta que passa por escolher diversidade, que é muito importante. Ao longo dos anos temos sentido transformações pelos resultados que têm saído do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). Há muitos anos seria sempre impossível uma pessoa com um curriculum como o meu conseguir um subsídio.
Foi o caso no “Listen” que contou com o apoio do ICA.
Eu candidatei-me ao ICA, sozinha com um guião na mão e o filme foi apoiado. Se não fosse o ICA, a RTP, o Bando à Parte e o Rodrigo Areias este filme não existia. Há este lado que é fundamental. Regra geral, há várias razões para ao longo dos anos se acusar de uma certa política de gosto, mas também temos um histórico que vai ao encontro disso. Temos tido muitos filmes premiados lá fora e com muito reconhecimento. Não se pode ignorar isso.
Agora que “Listen” chega às salas, o que diz ao público que ainda não regressou às salas de cinema por causa da pandemia?
Eu respeito quem tem medo de ir a determinados sítios, acima de tudo se pertencer a um grupo de risco, mas também tenho que apelar a que as pessoas continuem a viver. Acho importante que grupos de risco se protejam, mas nós que não pertencemos a um grupo de risco temos o dever de cumprir as regras para salvaguardar a nossa saúde e, acima de tudo, a dos outros.
Nessa medida, acho que as pessoas devem continuar muito atentas, com as regras em mente, mas a ir ao cinema, tal como saem para almoçar ou jantar fora. É muito mais seguro ir ao cinema do que sairmos para ir almoçar ou jantar fora. Apelo a todos que vão ao cinema, não precisam das pipocas, é manter a máscara o tempo todo e ir ver cinema em sala.