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​Há poesia no meio do caos da pandemia, no olhar do médico e poeta Barreto Guimarães

19 fev, 2021 - 16:00 • Maria João Costa

Poeta e médico cirurgião, João Luís Barreto Guimarães lançou em tempo de pandemia o livro “Movimento”, que fala da felicidade de estar vivo. Venceu um prémio nos Estados Unidos e vai ultrapassar uma barreira ao ter a poesia traduzida para inglês. A pandemia rouba-lhe tempo à poesia, mas vai escrevendo versos.

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Já fora da entrevista, explica que já tomou a primeira dose da vacina contra a Covid-19, mas mostra-se apreensivo com as novas estirpes. Médico cirurgião no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho, João Luís Barreto Guimarães viu a pandemia interferir no quotidiano sobre o qual tanto gosta de escrever na sua poesia.

Ao "Ensaio Geral", da Renascença, o médico-poeta diz que o confinamento fechou-lhe um dos seus laboratórios de escrita, os cafés, onde gosta de se sentar a ver e a ouvir a vida a acontecer. No hospital, onde as rotinas foram alteradas e onde os primeiros meses foram de “caos”, a situação, agora, é mais tranquila, mas nem por isso deixou de ter tempo para a poesia, "nem que seja para ler".

O seu mais recente livro, editado pela Quetzal, tem um título quase contraditório com a "castração" que diz que a pandemia provoca nas nossas vidas. Chama-se "Movimento" e é uma "celebração da vida".

A poética de Barreto Guimarães chega, agora, à língua inglesa, depois de ter vencido um prémio nos Estados Unidos que lhe vai permitir a tradução dos seus versos para o mundo anglo-saxónico.

O seu mais recente livro de poesia, “Movimento” surge num ano em que os movimentos ficaram condicionados. Não lhe parece quase contraditório?

Como se imagina, não poderia adivinhar que vinha aí um confinamento tão rigoroso quando entreguei o original ao Francisco [José Viegas]. Não deixa de ter graça o lado profético que, por vezes, a poesia consegue captar, ao plasmar um bocado o ar do tempo. Neste caso, aquilo que para mim foi uma afirmação positiva do movimento como metáfora da vida acaba por proporcionar neste contexto uma leitura inversa pela falta que o movimento nos faz, e pela castração que esta pandemia tem provocado nas nossas vidas.

Os seus poemas refletem, no entanto, essa vida do dia-a-dia, as amizades, a beleza da arte, o tempo. São os seus temas?

Tudo o que para mim se movimenta na minha realidade, me apela para a escrita. Acaba por estar plasmado neste livro e tem muito a ver com próprio processo de escrita. Eu vou recolhendo imagens e vou registando versos por um período muito prolongado de tempo que por vezes chega a ser um ano e meio. Há um momento a partir do qual reúno o conjunto de poemas e tento descobrir o que os une. É nessa altura que surge o título para o livro. Neste caso, um pouco também na sequência das minhas obras anteriores, nomeadamente “Nómada”, onde celebrava o nomadismo do pensamento, segui um passo à frente nessa linha e resolvi escrever sobre esta ideia de quotidiano, uma celebração mais obvia da vida, da felicidade e do ato de estar vivo.

Essa ideia de passagem do tempo, de quotidiano está também neste livro nos vários capítulos que são os dias da semana.

O tempo é uma presença muito marcada na minha escrita. Desde logo na antologia anterior quis que essa palavra estivesse presente no título quando lhe chamei "O Tempo Avança por Silabas". Esta ideia de organizar o livro desta forma, não é original na minha escrita no sentido em que tenho muito claro para mim que uma coisa é escrever poemas, outra coisa é fazer livros de poesia.

Mas esses capítulos marcam o ritmo. Marcam também um espírito dos poemas?

Aqui neste caso, este modo de organizar o livro em dias, utilizando não os nomes que São Martinho de Dume utilizou para chamar aos dias da semana, mas indo buscar as origens que os antigos deram aos dias da semana, a Lua, Marte, Mercúrio, Júpiter e Vénus, e Dia de Saturno e o Dia do Sol. Constatei que cada um destes astros ou deuses, tem um determinado significado na mitologia, por exemplo, a Lua está muito ligada à melancolia, tristeza e timia. Existe o dia da Lua que é segunda-feira. Marte é mais ligado à guerra, ao impulso e determinação. Mercúrio, quarta-feira, é a inteligência, a adaptação do ser humano. Na quinta-feira, a lei e a nova oportunidade. Na sexta-feira, uma espécie de ilha dos amores, a paixão e o amor. Depois no sábado, Saturno, é o tempo, a reflexão e o descanso e o domingo, o Sol, como símbolo da vida, da criação e da energia.

O que fiz aos poemas que me aconteceram durante aqueles dois anos foi encaixá-los em cada uma destas tenções, em cada um destes momentos, de forma a que o livro quando lido ciclicamente desenhasse uma narrativa. Tínhamos a poesia a piscar o olho à narrativa. Numa altura em que o romance pisca o olho à biografia, à nota de rodapé, achei interessante que a poesia fizesse o caminho inverso na direção do romance, usando a biografia do autor, sendo o autor o personagem e tivéssemos aqui a poesia à procura da narrativa.

Um dos seus laboratórios de escrita são os cafés. É lá que já o vi de caderno e caneta na mão. Agora, com a pandemia e o confinamento, não pode frequentar essa sua oficia de escrita. Como tem encarado isso?

Tem sido muito triste, porque os cafés são o epicentro do mundo, para mim. É um local de recolha de versos, de inspiração, quer através do olhar, quer através da audição. O ruido em si, nunca me perturbou particularmente. Gosto muito de escrever no meio do ruído e no meio dos cafés. Faz falta aquele ritual, faz falta a droga café, em si, mas faz falta aquela oficina de estar parado a ver o mundo a passar e ter tempo para esse ócio de escrever o que os olhos captam e os ouvidos escutam.

Venceu nos Estados Unidos o prémio Willow Run Poetry Award com o livro “Mediterrâneo”. É o primeiro português a consegui-lo. Já antes, o livro “Nómada” tinha ganho o Prémio Bertrand e venceu no ano passado a primeira edição do Prémio Literário Armando Silva Carvalho. Como vê esta boa fase de exposição da sua poesia?

São alegrias, naturalmente, mas devo confessar que têm também um lado prático. No caso de "Mediterrâneo", que já está editado em Espanha, México, França, Itália, Polónia e parcialmente na Croácia, há uma barreira muito grande na transposição para a língua inglesa. Há uma dificuldade real, pelo menos, a nível da poesia, de transpor essa barreira que é publicar em língua inglesa e um livro dar-se a ler no universo anglo-saxónico. Este prémio nos Estados Unidos traz precisamente essa possibilidade porque parte do prémio é a sua edição.

Por outro lado, cá em Portugal tenho a perceção de que este tipo de prémios literários chamam um pouco à atenção, do universo de leitores que não é muito grande e num país que atravessa as dificuldades económicas, onde os livros para certas pessoas representam um sacrifício económico, a possibilidade de um prémio literário poder influenciar a escolha que um leitor faz de adquirir este livro ou outro livro é uma realidade. Isso é muito importante, para as editoras que investem na poesia. Estes prémios têm repercussão no número de vendas. Isso é bom para a editora e para o autor, na possibilidade que dá de publicar o livro seguinte.

Como médico que está diariamente em ambiente hospitalar, consegue, no meio desta pandemia, encontrar tempo para a poesia?

Encontro sempre espaço para a poesia, quanto mais não seja ler! Espantosamente, no meio deste caos todo, que é realmente um caos, e as nossas vidas no hospital foram completamente alteradas, consigo encontrar tempo para outros projetos. Terminei agora a tradução do último livro de poesia de uma autora canadiana muito importante que será uma novidade editorial bastante interessante brevemente e também uma antologia de poemas de uma poetisa portuguesa de quem gosto muito. Também sairá brevemente.

E a sua poesia acontece?

Eu vou sempre escrevendo versos e poemas, mas sem a preocupação de terminar os poemas e de completar núcleos de poemas. Vou deixando que as coisas aconteçam, até porque de livro para livro o meu próprio grau de exigência torna-se maior e há muitas situações em que não fico satisfeito com o que escrevo quando leio no dia seguinte, ou uma semana depois. O que prevejo é que o tempo de escrita de novos poemas vá progressivamente alargando, porque tenho menos tempo devido à pandemia e depois porque o meu grau de exigência com a minha poesia também aumenta.

Mas isso não é um motivo de angústia para mim. Sei que o que é interessante para os leitores é de três em três anos aparecer um livro novo, mas o que é interessante para o poeta é não só o processo de escrita, e de descoberta dentro de si de versos que não sabia que existiam, mas também o processo de revisão, ler e rever, cortar e rescrever o próprio poema. É o gozo que o poeta tem em tudo isto!

Como está, enquanto médico, a viver esta pandemia, no Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia/Espinho? Como tem sido esse caos de que fala e que alterou por completo as vidas dos médicos?

No princípio, em março, estávamos todos muito assustados. Não sabíamos se o simples carregar no botão do elevador do hospital era uma fonte de transmissão de doença ou não. Não sabíamos se o facto de respirarmos o mesmo ar que o colega do lado tinha expelido na cantina, no corredor, numa sala ou numa enfermaria era, ou não, motivo para apanharmos a doença. Beneficiamos de sermos periféricos. Chegavam cá as imagens de Itália e Espanha e pudemos precavermo-nos um pouco, tomarmos cuidado do ponto de vista dos equipamentos.

Depois, à medida que fomos conhecendo melhor a doença, fomos ganhando um pouco mais de confiança, fomos redistribuídos por tarefas. Entre abril e julho, houve uma fase muito crítica em que a cada semana duplicamos, em alguns casos, triplicamos as nossas tarefas, porque tivemos de libertar colegas nossos mais novos para tratar Covid. Há medida que foram saindo mais artigos sobre a doença e que fomos conhecendo melhor esta nova realidade, fomos ganhando um pouco mais de confiança e agora estamos um pouco mais tranquilos, porque a maior parte de nós já foi vacinado.

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