09 abr, 2021 - 08:00 • Hélio Carvalho
Fechado e sem concertos ao vivo, sem palcos para pisar e sem públicos para atuar, Rui Massena virou-se para o piano e gravou a sua interpretação da pandemia. Lançado no dia 2 de abril, "20PERCEPTION" é o novo trabalho do maestro português, um EP instrumental que procura representar "uma época da nossa vida em sociedade" e está aberto a uma vastidão de interpretações.
Os temas do EP foram lançados aos poucos - o primeiro a ser lançado foi "A SONG", como single nas plataformas digitais e de streaming. A nova música de Rui Massena rapidamente apanhou a atenção da comunidade internacional e entrou para os tops de música clássica da Apple Music em 101 países.
A EP é oficialmente lançado esta sexta-feira. Em entrevista à Renascença, Rui Massena fala de um álbum que reflete os tempos, reflete o que o próprio compositor viveu durante a pandemia mas, acima de tudo, procura que cada um encontre as suas experiências refletidas nas músicas.
"Este EP retrata aquilo que eu achei que esta pandemia trazia à sociedade, uma espécie de naufrágio coletivo onde cada um tem de seguir as suas próprias orientações para nadar para terra, cada um está à procura de perceber onde é que está a terra e como é que vai nadar para lá. Eu acho que, de alguma forma, eu quis criar música que tivesse uma espécie de cenário mais induzido e não tão afirmado", afirmou o músico.
Este conceito aberto e vago em cada música permite, segundo Rui Massena, que cada um tire as suas próprias conclusões de cada música, a partir dos diferentes timbres. Se uma música é mais calma e com um timbre mais suave, tanto pode trazer tristeza como afeto.
"Esta música instala a contradição com que nós vivemos toda esta pandemia. O 'eu', o 'nós', o 'amar' e o 'odiar', a 'dificuldade' e os 'estados de êxtase'. Toda esta contradição que foi acontecendo está refletida aqui e é impossível passar por este tempo sem ela conter alguma melancolia, sem conter alguma tristeza, porque a pandemia é feita de uma perda global, mas também está lá alegria, o afeto, o carinho", conta o maestro.
O primeiro single do EP, a música "A SONG", um solo de piano simples e leve, serve como "uma espécie de balão de oxigénio". No fundo, "20PERCEPTION" é um álbum "mais atmosférico, menos específico no entendimento, tem menos assertividade melódica", para que cada um explore os diferentes timbres e as diferentes "intimidades".
Além das músicas, Rui Massena também produziu os seus próprios vídeos - aliás, vinca que todo o álbum foi produzido por si - e considerou que "era muito complicado traduzir a um realizador aquilo que estava a ver".
Diz que os vídeos "não têm nada de cinematográfico, têm um olhar absolutamente cru que retrata os dias que eu vivi na pandemia" e, portanto, também servem para ser interpretados e não para serem simplesmente lidos.
"Eu quero que as pessoas façam as suas próprias interpretações das canções. Estas músicas são um exercício provocativo à imaginação. Eu produzo um olhar, a vibração e os sons que cada um vai sentir e vai poder interpretar", disse o músico. As seis músicas, conta Rui Massena, têm nomes têm "terminologias muito abertas" e, apesar de terem um valor específico para o artista, procuram ser "um exercício provocativo à imaginação de quem os vê".
Já "CIVILIZATION", o quinto tema do álbum, tem sons mais rasgados e mais eletrónicos, o exemplo de "uma certa agressividade, que também é um dos pontos em que o ano de 2020 foi muito forte".
Por outro lado, o segundo single do álbum, "70PERCENT", procura demonstrar como todos estamos interligados com o mundo e a natureza à nossa volta - jogando com o facto de tanto o ser humano como o planeta Terra serem compostos por cerca de 70% de água. "Este '70PERCENT' tem para mim uma ligação ao ecossistema em que nós estamos, que está posto em causa de muitas formas, quer na nossa relação com a natureza e na sua preservação e cuidado, quer no cuidado que tivemos de ter connosco próprios", explicou Rui Massena.
O nome do álbum também chama à atenção devido à duração do mesmo. "20PERCEPTION" dura, exatamente, 18 minutos e 16 segundos, quase 20 minutos de música instrumental. Questionado sobre se a duração do álbum foi intencional ou não, Rui Massena confessou que o formato do EP "tem um bocadinho de tudo".
"A ideia de serem 20 minutos simbólicos de música tem a ver com a evolução da perceção em 2020, um ano em que eu gostava que ficasse na memória e que, daqui a 10 anos, eu conseguisse olhar para trás e ver o que ele quis dizer para mim", afirmou o artista.
O maestro também revelou que, antes de compor os sons de "20PERCEPTION", existia um outro conjunto de músicas gravadas e prontas a lançar. Mas Massena considerou que não era o momento certo para as lançar e, para já, ficam guardadas.
"Eu também tinha um álbum completamente feito antes deste e senti que aquele álbum não representava o que eu era naquele momento. Portanto, guardei-o na gaveta e resolvi compor alguma coisa que tivesse a ver com o momento presente e que refletisse aquilo que eu próprio estava a ler do presente", disse.
Além disso, este EP é "álbum especial": é um disco que serve para documentar a pandemia e para marcar o período em que vivemos. "Eu quis que fosse um álbum completamente à parte, que fosse quase um documentário em sons, e quis mantê-lo numa galeria à parte. É um álbum que, por um lado, é muito pessoal porque fui eu que o produzi, mas por outro lado representa uma época da nossa vida em sociedade.
Por ter sido produzido por si, Rui Massena contou ainda que o uso de sons mais eletrónicos advém do seu próprio gosto, da sua interpretação daquilo que é a sua música, encaixada "numa prateleira mais de neoclássica".
"Eu gosto de me distinguir bem do que são as grandes composições e da sua complexidade, gosto de olhar para isto pela simplicidade e obviamente que a eletrónica está muito presente porque ela está presente na minha vida e eu gosto dos sons sintetizados e de cruzar sons", explicou.
Rui Massena lançou "20PERCEPTION" a poucas semanas da cultura poder voltar aos palcos portugueses, se o plano de desconfinamento apresentado pelo Governo correr dentro do previsto.
O maestro admite que é um "privilegiado", já que a sua relação com a famosa editora de música clássica Deutsche Grammophon permitiu-o atuar no World Piano Day ao lado de outros pianistas reputados, entre os quais Maria João Pires, mas reconheceu que o ano foi "muito difícil" para os profissionais da cultura e alerta para um maior apoio.
"Foi um tempo muito difícil para todos os artistas, para todos os técnicos, para todas as pessoas que estão na indústria das artes. Um ano em que se percebe a fragilidade em que as pessoas que têm um olhar diferente sobre a sociedade vivem. E vivem com grande desajuste em relação às outras profissões, com uma grande desproteção, e nós que já estamos cá há bastante tempo a fazer música e artes sentimos que algo tem de ser feito na estruturação de profissões que são importantes para a economia", afirma Rui Massena.
O pianista vinca que os artistas "trabalham sempre numa espécie de limbo, de dificuldade, continuam sempre a acreditar no mundo que constroem e ele é essencial para a construção de identidade de um povo, de um país, de uma região, de um continente, de tudo". E, como tal, precisam de ser mais apoiados.
"Há que pensar muito bem como é que se pode estruturar a criatividade em Portugal, como é que se deve estruturar um projeto que sustente mais, que dê um braço maior às artes, porque nós todos nos apercebemos da grande fragilidade em que vivemos e isso não desperta a tal criatividade que a maior parte das pessoas pensam", diz Rui Massena.
Nesta entrevista à Renascença, o maestro acrescenta ainda que "os artistas trabalharam mais do que nunca porque também é o seu processo, somos pessoas que tal como em muitas outras áreas trabalhamos imenso e somos o contrário que nos querem fazer parecer, que são pessoas que vão atrás do subsídio."