07 mai, 2021 - 17:44 • Maria João Costa
Ouvem-se os pássaros durante toda a entrevista. Afonso Cruz vive no meio do Alentejo, num monte onde diz que a natureza o ajudou a passar este último ano de pandemia. Do isolamento de que gosta, resulta agora o livro “O Vício dos Livros”, uma obra que é um hino à virtude da leitura.
Reúne neste livro, editado pela Companhia das Letras, diversas histórias que foi colecionando em torno do poder dos livros e dos hábitos de leitura.
Sobre os livros classifica-os como os seus “blocos construtores”, diz que já não cabem em casa, mas continua a escrevê-los. Em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, Afonso Cruz explica também porque não só escreveu, como ilustrou este novo livro
“O Vício dos Livros” é uma declaração de amor ao livros e hábitos de leitura. O que o levou a escrever esta obra?
O facto, em primeiro lugar, de gostar muito de ler e de livros, o ter passado muito tempo com eles e, claro, há aqui uma ligação fortíssima. Ao longo da vida, sobretudo desde que sou escritor, fui recolhendo algumas histórias, seja através de testemunhos de amigos e conhecidos, até terceiros e por fim, também através de leituras que fiz. Fui reunindo estas histórias sobre a leitura, os livros e a importância transformadora que eles tiveram na vida destas pessoas.
A leitura é um hábito que tem desde criança? Revela neste livro que lia no autocarro quando ia para a escola. Os livros eram a sua companhia?
Para mim sim. Sou filho único e passava muito tempo sozinho. Naquela altura as distrações eram outras, e os livros eram uma delas. Passava bastante tempo com eles. Acabou por orientar a minha vida no sentido da leitura e mais tarde da escrita.
Uma das histórias que conta neste livro fala do efeito transformador e até libertador que a leitura pode ter. Que poder é esse, o dos livros?
Há inúmeros casos de pessoas para quem a vida se alterou radicalmente graças à leitura ou aos livros. Eu nunca tive uma experiência tão radical! Foram transformações, claro, senti que alguma coisa mudou, mas de uma maneira mais paulatina, mais lenta.
Fui lendo, fui alterando a minha maneira de pensar, fui encontrando novos ângulos, novas perspetivas para olhar para ideias e contextos. Mas há muita gente que tem essa experiência, que mudou radicalmente a sua vida. E o caso dessa escritora de que falo no livro é um caso paradigmático, mas também por exemplo, o do escritor tunisino de que dou exemplo.
O que leu um pedaço do livro “Ensaio sobre a Lucidez” de José Saramago?
Ele acaba exilado, despedido, por um mal-entendido. Um equívoco! Porque leu o “Ensaio sobre a Lucidez” numa altura em que o regime leu essa intervenção que ele teve sobre o livro do Saramago, como uma mensagem. Leu “literalmente” o que ele tinha divulgado! E acabou em maus lençóis. Aqui até uma transformação pela negativa, que é mais uma perseguição do que outra coisa qualquer.
A cultura para alguns regimes continua a ser considerada uma ameaça. Por cá, durante a pandemia muito se falou do valor da cultura. Acha que se passou a valorizar mais a cultura, quando não se podia “aceder” a ela?
Tenho algumas questões. Não consigo ter uma opinião suficientemente objetiva. Sei que alguns países bateram recordes de venda de livros. Coisa que acho que não aconteceu em Portugal. Parece-me que alguns países têm condições socioeconómicas melhores do que a nossa, portanto têm possibilidade de combater a pandemia de outras maneiras.
Creio que, se calhar, cá, as pessoas continuam a não querer arriscar, a sua estabilidade económica é menor, e portanto comparando com alguns países europeus, se calhar as pessoas continuam com algum receio de gastar dinheiro. Apesar de não fazerem viagens, ir a restaurantes, sentem algum receio em fazê-lo com os livros.
Ainda que outras expressões culturais, como o teatro, a música, mesmo que online, as pessoas parece-me que aderiram bastante e perceberam a importância da cultura no momento em que estamos confinados.
Estas são algumas histórias sobre livros e leitura, havia mais? Ficaram algumas de fora?
Deixei algumas e por vários motivos. Algumas já tinha falado sobre elas noutros contextos, não necessariamente no “O Vício dos Livros”. Um dos episódios já tinha falado no “Jalan, Jalan”. Mas havia mais! Havia outras de que não falei e deixei de fora, por sentir que eram demasiado complexas ou não se adequavam ao estilo do livro que queria publicar.
Tal como Borges, os livros são a sua “autobiografia”?
Sim, os livros e a cultura, como são as viagens na minha escrita. Aliás falo disso neste livro quando cito Borges ao dizer que uma biblioteca é uma autobiografia. São as minhas referências, os livros, e alguns dos meus blocos construtores. Podem criar um reflexo da minha identidade.
Neste livro não só o escreveu, como o ilustrou, e recorreu a algumas imagens de outros artistas.
Porque o livro é um diálogo com outras expressões artísticas, com outras pessoas e outras vozes, achei que as ilustrações também deveriam refletir esse outro lado. Se o livro, na parte escrita tem várias citações, achei também interessante que na parte das ilustrações também as tivesse.
As viagens são uma marca da sua escrita, como tem sido este último ano, sem essas viagens e com o confinamento?
Não me queixo de quase nada! Passei por este período de pandemia mais ou menos bem. Não vivo num apartamento, vivo no meio de um monte. Abro a porta de casa e estou no meio da natureza, não estou confinado a um espaço reduzido e isso ajuda bastante. Por outro, lado gosto do isolamento e de estar sozinho. Não pondero sequer regressar à cidade. Apesar de não ter viajado, não correu mal!