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Fogo de Monchique foi “gatilho emocional” para o livro de Sandro William Junqueira

27 ago, 2021 - 06:47 • Maria João Costa

“A Sangrada Família” é o novo livro de Sandro William Junqueira. A obra tem como cenário a Serra de Monchique, no Algarve, e os produtores de medronho. O autor esteve no terreno durante os incêndios de 2018 e o fogo atravessa as páginas desta história.

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Nas palavras do escritor português Sandro William Junqueira, este é um livro com “mundo e pessoas” dentro.

Nasceu de um desafio para escrever textos para teatro, para serem representados no âmbito do festival “Lavrar o Mar”, no Algarve. Mas os textos que seriam interpretados nas destilarias de medronho em Monchique rapidamente se transformaram em livro, depois do autor em 2018 ter estado no terreno durante o grande incêndio que fustigou aquela serra algarvia.

Sandro William Junqueira conta em “A Sangrada Família” episódios reais às quais não ficou indiferente. Do terreno trouxe cheiros, histórias, imagens que lhe serviram de ingredientes para o livro, que diz marcar uma viragem na sua forma de praticar a literatura.

“A Sangrada Família”, agora editado pela Caminho, é um livro muito diferente dos anteriores. É o primeiro livro seu passado em território nacional, assumidamente, e onde conta histórias de personagens de carne e osso. Como é que o livro surgiu?

O livro nasce de um lugar diferente dos meus livros anteriores. Todos os meus livros anteriores, estava sozinho num quarto a escrever. Partia para os livros de uma imagem ou de uma frase. Este livro nasce de um convite do Giacomo Scalisi, que é um dos responsáveis do evento “Lavrar o Mar”, para escrever textos para serem interpretados nas destilarias de medronho em Monchique. Fui lá, conheci as pessoas, os produtores, os que fazem a destila e reuni material concreto e real.

Encontrou matéria humana?

Sim, no fundo acho que este livro pode ser de transição mesmo na minha forma de trabalhar a literatura. Desci da torre para beber do mundo e entrar no mundo. Este livro tem mundo e tem pessoas. Foi algo que descobri e que me interessou.

A Serra de Monchique foi tomada pelo fogo já por diversas vezes. E isso atravessa também todo este livro. Em que medida os incêndios lhe interessaram?

Eu e o Afonso Cruz é que escrevemos para este projeto. Nos primeiros textos iriamos escrever sobre a destila e os segundos sobre a apanha do medronho, mas, entretanto, deram-se os grandes incêndios em 2018 e nós mudamos a orientação e fomos lá assistir à devastação em direto.

Foi uma experiência muito impactante e terrível e voltei a falar com as pessoas que tinham perdido tudo de um momento para o outro. Esse momento foi de viragem até na própria história.

Há uma personagem, o Teodoro, que a certa altura diz uma espécie de profecia: “em breve vamos entrar muito depressa numa noite cabra”. As cinzas e o fogo atingem a história.

Quando estive lá da primeira vez, é obvio que os incêndios fazem parte da vida daquelas pessoas. Eles estão sempre preparados. E por isso é que a personagem de Manuel Monteiro diz que “tem seis incêndios de vida”. Conta-se a vida pelos incêndios. Aquelas pessoas vivem muito perto da natureza e da natureza. Como tal estão sujeitas à imprevisibilidade.

É engraçado a questão do fogo, porque sem o fogo não consegues fazer o medronho, e depois é o próprio fogo que acaba por queimar os medronheiros. Há esse duplo sentido. E esse momento do fogo foi brutal para mim. Serviu quase como um gatilho emocional, uma missão, eu tenho de escrever sobre estas pessoas e o que elas estão a passar.

Há histórias aqui que são verídicas?

O que é terrível é isso. Há uma passagem no livro inspirada mesmo em factos verídicos. Um dos produtores com quem falei ficou sozinho a defender a sua casa, o restaurante e os terrenos em volta e os bombeiros a querer obrigá-lo a sair de lá. E ele não queria sair e não saiu. É muito difícil compreender isto. Claro que as vidas humanas não têm preço, mas a vida daquelas pessoas é aquilo. Perdendo aquilo, deixa de fazer sentido. Isto, eu nunca tinha tido um contato tão próximo deste conflito.

São marcas que lhe ficaram?

O que o livro tem é isso, por isso brinco que o livro é quase um objeto híbrido entre ficção, realidade, teatro e documentário. É uma mistura que deu este objeto.

Como é que viu o regresso dos incêndios à Serra de Monchique já este verão e ao resto do Algarve?

A minha perceção mudou, claramente. Eu vivi muitos anos no Algarve, numa zona litoral em Portimão, e assisti várias vezes a olhar para trás e ver a Serra de Monchique a arder. Mas era uma desgraça que acontecia longe. Tu não estás ligado àquele território. Não vives ou sobrevives daquilo. Agora, aquelas pessoas, é diferente. Esse abrir de olhos para mim foi muito importante e impactante.


Este livro retrata ao mesmo tempo a situação que muitas famílias portuguesas vivem, de disputa de terrenos e heranças.

Sim, essa questão dos terrenos não é só na serra; a questão das casas, das propriedades, dos bens materiais, há sempre essa disputa. Eu tentei, e acho que é um livro onde eu aponto a faca à instituição da família. A família é muitas vezes o porto de abrigo e afetos, mas também pode ser um lugar de difícil habitação, porque há discórdia, expetativas defraudadas, traições, as lutas pelas heranças, etc.

Aquela questão de que temos o mesmo sangue e que somos obrigados a ficar reféns quase de uma obrigação social, às vezes não corre bem. Não corre porque estamos a exigir ao outro que o outro seja uma coisa que ele não quer. Não aceitamos o outro como ser individual.

Por isso, é que no livro aparece muito a questão da matilha dos lobos. Para pertenceres à matilha tens de aceitar uma espécie de aniquilação? E o que é isto de estarmos unidos pelo sangue? O que é que nos prende uns aos outros na família sanguínea? Acho que o livro interroga e aponta a faca a este conjunto de questões.

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