01 out, 2021 - 07:11 • Maria João Costa
Portugal foi dos primeiros países não-francófonos a publicar as aventuras de Tintin. Corria o ano de 1936 e o pagamento pelas publicações chegava à Bélgica, a Hergé, em forma de bens alimentares como latas de sardinha, cacau e outros víveres escassos na antecâmara da II Guerra Mundial. Esta é a parte da história que não está contada na exposição dedicada a Hergé que abre esta sexta-feira ao público na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa.
Os detalhes da ligação de Hergé a Portugal são revelados na edição de um livro que sai ao mesmo tempo que o catálogo da exposição organizada em colaboração com o Museu Hergé, em Louvain-la-Neuve, na Bélgica, e que mostra em Portugal muitas pranchas originais de Hergé. Numa delas está Oliveira da Figueira, a única personagem portuguesa a integrar um dos livros de aventuras de Tintin.
Mas esta exposição, como explica o seu curador, não é sobre Tintin, a criação mais famosa de Hergé. É antes uma mostra sobre o próprio autor, de seu nome próprio Georges Remi.
Em declarações à imprensa na apresentação da exposição, um dos seus curadores, Nick Rodwell, responsável pela fundação que faz a gestão dos direitos do trabalho de Hergé, começou por recordar que esta exposição nasceu de um desafio do Grand Palais, em Paris, em 2016.
“Eles pediram-nos uma exposição sobre Hergé, e eu perguntei-lhes: ‘sobre o Tintin?’ Eles disseram: ‘não, é sobre o Hergé, porque acreditamos que o Hergé era um artista como Hopper ou Picasso e todos os outros’. Eu disse, ‘bom, acho um pouco exagerado, mas se é isso que querem é isso que faremos’”.
A mostra chega agora a Lisboa depois de já ter estado no Québec, Coreia do Sul e na Dinamarca. Segundo Rodwell, “é uma linda exposição que explica tanto o Hergé como o Tintin”. Esta retrospetiva começa pelo fim, pelo dia em que o conceituado jornal "Libération" fez capa com a morte de Hergé, com a imagem de Tintin caído no chão.
“O nosso objetivo é que o visitante venha aqui, desligue o seu telemóvel, concentre-se, fique sensibilizado com o que vê, aprenda algo e saia com um sorriso na cara”, aponta Nick Rodwell.
“Hergé” é uma exposição que transporta o visitante para dentro da vida de um artista multifacetado. Nas palavras da curadora portuguesa Ana Vasconcelos, “há uma colagem Hergé-Tintin, Tintin-Hergé. Quem é que nasce primeiro, como o ovo e a galinha. Mas, na verdade, o Hergé é uma personalidade fabulosa e múltipla, com defeitos que fazem dele humano e próximo de nós”.
Na primeira sala da exposição o visitante é convidado a descobrir que Hergé sonhou ser pintor, mas considerava que não tinha jeito. Depois encontra parte da sua coleção de arte privada. Entre as peças expostas está um Andy Warhol. Trata-se de um dos quatro retratos que o mestre da Pop Art fez de Hergé e tem uma história curiosa.
“O Andy Warhol encontrou-se com Hergé e perguntou-lhe se ele queria que ele fizesse o seu retrato, ao que ele respondeu, ‘ok, pode ser’. Ele disse-lhe então para lhe mandar uma fotografia tipo passaporte. Ele mandou e uns meses depois recebeu o primeiro quadro, mas também recebeu a conta de 10 mil dólares”, conta Nick Rodwell.
Um mês depois, Hergé recebeu um segundo retrato e uma nova conta de 10 mil dólares que não era o que ele esperava, e chegou um terceiro quadro e outra conta de 10 mil dólares.
“Aí, ele escreveu a Warhol a dizer: ‘sabe o que terá de fazer com o quarto retrato? Fique com ele, por favor, não estou interessado!’, adianta o curador, que lamenta que o quarto retrato tenha ido parar a um colecionador privado e nunca tenha sido reunido com os restantes.
Ao longo da exposição, são revelados os bastidores, a forma como Hergé era perfeccionista ao criar as aventuras de Tintin. Ana Vasconcelos dá o exemplo dos álbuns de banda desenhada sobre a Lua.
Hergé, explica a curadora, “torna-se um maníaco da documentação e rigor, da transposição da realidade para a ficção. Atinge um ponto forte nas Aventuras Lunares. Constrói uma maquete de um foguetão e pede a um astronauta para lhe dizer como é que as pessoas se mexem dentro de um foguetão e quer que os desenhadores integrem o espaço dentro do foguetão para o poderem desenhar e pôr lá o Tintin”.
No percurso da exposição, ao longo de nove núcleos, é ainda possível conhecer a obra gráfica de Hergé, o seu trabalho como publicitário e ilustrador. Mas estão também os primeiros desenhos originais de Tintin, as primeiras pranchas em que o cão Milu falava, mas também vemos como a época que Hergé viveu está retratada nas aventuras do famoso jornalista, no Congo, no Quebec, ou em outros locais como o Tibete e a União Soviética.
Nick Rodwell faz questão de sublinhar o contexto em que muitas das obras foram criadas: “tem de se compreender que cada país tem a sua história cultural e tudo o que Hergé fez foi inspirar-se no que o rodeava. A forma como ele trata o Congo, ou países da América do Sul é como as pessoas viviam naquela época”.
Ainda assim, o curador de origem britânica e casado com a viúva de Hergé explica que atualmente está em Xangai, na China, uma outra exposição sobre Hergé e que o livro “Tintin no Tibete”, foi anulado da mostra.
A exposição “Hergé” pode ser visitada na Galeria Principal da Fundação Calouste Gulbenkian, até 10 de janeiro do próximo ano. A data simboliza o dia em que Hergé publicou pela primeira vez as aventuras do repórter Tintin, em 1929.
Ao longo da temporada da exposição vão decorrer diversas conversas em torno da obra e época de Hergé. O Ciclo “Hergé no mundo contemporâneo” conta com a moderação de António Costa Pinto e terá, por exemplo, a 12 de novembro, às 18h00, uma conversa entre António Cabral e António Araújo sobre Hergé e o Portugal do Estado Novo.