13 dez, 2021 - 07:00 • Rosário Silva
As mãos de Sara Sequeira repartem-se entre o papel, a cola e o arame. Numa casa, junto ao jardim municipal de Campo Maior, várias senhoras juntam-se para fazer o que mais gostam: flores e outros motivos de papel.
Aos 47 anos, Sara mantém a mesma alegria de quando era criança e, com os pais, sempre que as festas do povo se realizavam, “dobrava o papel e fazia os torcidos”.
“Não lhe sei explicar bem, mas acho que é a arte que temos nas mãos, pois as flores parecem naturais”, diz à Renascença a orgulhosa campomaiorense.
Uma “arte” que anseia ser classificada como Património Cultural Imaterial, pela UNESCO. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura aceitou a candidatura das Festas do Povo de Campo Maior. É a única candidatura apresentada por Portugal e vai ser analisada na 16.ª reunião do Comité do Património Mundial que decorre em Paris, França, entre 13 e 18 de dezembro.
“Acho que era uma coisa muito merecida, porque os nossos antepassados já faziam as festas com flores feitas de papel de jornal, e sermos reconhecidos mundialmente pela nossa tradição era muito bom, pois isto é uma marca nossa”, refere Sara Sequeira, que destaca a “euforia” que está inerente não só às festas em si, mas a todos os preparativos.
“Olhe, juntamo-nos todas numa casa a fazer flores, uma leva um licor, outra leva um bolo, uma diz uma coisa a outra deixa-se rir, e depois na noite da enramação juntam-se os homens e vêm familiares de fora para nos ajudar, é espetacular”, descreve.
A noite da enramação é, precisamente, um dos momentos mais esperados pelos campomaiorenses, já que, depois de largos meses “no segredo dos deuses”, o trabalho de uma vila inteira sai das quatro paredes para enfeitar as cerca de 100 ruas que, habitualmente, participam no evento.
Ninguém dorme e desvendam-se segredos, uma vez que cada rua participante desconhece o tema das outras ruas “adversárias”.
É já de madrugada que a vila alentejana do distrito de Portalegre renasce, florida, à espera dos muitos milhares de visitantes que, durante nove dias, entre finais de agosto e princípios de setembro, vão visitar Campo Maior.
“É lindo, lindo, as ruas engalanadas, a mistura dos tons, a diferença das cores”, afirma Conceição Quinta, saudosa de um novo evento, já que o de 2020 acabou por ser cancelado por causa da pandemia.
Também esta senhora de 53 anos nasceu já com as festas “coladas” à personalidade e é com imenso prazer que, sempre que “o povo decide fazer as festas”, passa serões e serões, após um dia de trabalho, a dar o seu contributo.
“É uma colaboração entre todos, uma coisa que está em nós. Não podemos ver o papel, é como ouvir cantar as saias, está-nos na alma. Não conseguimos ficar quietos, o nosso corpo mexe-se e quando vemos o papel, é a mesma coisa, os dedos começam logo a magicar”, explica-nos.
Por isso, acrescenta, “fazemos gosto que isto vá património, porque é a nossa essência”.
Uma “essência” que chegou mais tarde para Conceição Galvão, mas nem por isso com menos intensidade. “Adoro as nossas festas e sou muito bairrista”, confessa Conceição que tem a função de “cabeça de rua”, aquela que organiza os trabalhos.
“É uma grande responsabilidade, mas, com a ajuda de todos, tudo se leva. Logicamente, que eu tento manter sempre a os meus vizinhos unidos, para que possamos levar o trabalho para frente, mas se não fosse a ajuda de todos, era impossível”, diz esta campomaiorense de 59 anos.
Sobre a candidatura, considera que “as pessoas e a vila já mereciam”, além de “poder trazer a Campo Maior um grande reconhecimento”. Conceição já tem a postos “a pandeireta para fazer a festa”, caso se confirmem as melhores expectativas, ou seja, a atribuição do titulo internacional de Património Cultural Imaterial.
Não se sabe muito bem desde quando se realizam estas festas que começaram por ser uma celebração religiosa, em homenagem a São João Baptista, intituladas Festas em Honra de São João Baptista. Apesar de já não ter esse nome desde 1921, a presença do santo padroeiro persiste, com a sua imagem a ser levada numa pequena procissão que, ainda hoje, percorre as ruas da vila.
Frequentemente denominadas Festas das Flores, a pouco e pouco, o religioso começou a fundir-se com o pagão. Os ramos e os arbustos trazidos do campo para ornamentar as ruas, deram lugar ao papel de jornal e, mais tarde, até aos dias de hoje, ao papel de múltiplas cores e texturas que sempre surpreendem os visitantes.
“As edições de 2004, 2011 e 2015, diria que foram o grande ‘boom’ das festas, quer no número de ruas participantes, quer em termos de visitantes nacionais e internacionais, como que uma janela que se abriu para o mundo”, conta à Renascença Vanda Portela, a presidente da Associação das Festas do Povo de Campo Maior que liderou a candidatura, conjuntamente com a Entidade Regional do Turismo do Alentejo e Ribatejo e o município campomaiorense.
Na “essência do povo”, segundo esta responsável, reside o segredo destas festas, feitas com “união, dedicação e amor pela terra”, que transformam a vila num jardim de flores, a que se junta “a arte de bem receber”.
Neste processo, depois do povo decidir que há festas, a associação tem a tarefa de dinamizar e é no porta-a-porta, com os cabeças de rua, que aguça a vontade aos campomaiorenses, para que fiquem reunidas todas as condições. A partir daqui, trabalha para conseguir apoios que possam suportar as despesas que podem rondar “o milhão de euros”.
À semelhança de toda a população, também Vanda Portela espera boas notícias de Paris. “Creio que vamos obter este reconhecimento, porque o povo de Campo Maior merece, pela sua dedicação, empenho e voluntariado ao longo de tantos e tantos anos, sempre a dar o seu melhor e a receber bem”.
Lamentavelmente, por causa da pandemia, não vai ser possível a deslocação a França. O evento vai ser acompanhado à distância e a decisão vai chegar através do ecrã de um qualquer computador, sem dia nem hora marcados, já que esta é apenas uma das 60 candidaturas, com origem em todos os continentes, que será analisada na reunião de seis dias, do Comité do Património Mundial.
Nada que impeça a vila de festejar, caso o parecer seja positivo. “Mesmo cá, vamos fazer uma grande festa, Deus queira que sim, vamos festejar de pandeireta e castanholas nas mãos”, afiança a presidente da associação.
A contar as horas para conhecer o parecer do Comité do Património Mundial está também o presidente da Câmara Municipal de Campo Maior, Luis Rosinha, que tomou posse há dois meses.
“Não podia pedir mais”, diz à Renascença. “Embora cá esteja como vereador há oito anos, sendo agora o presidente recém-eleito, é uma satisfação enorme, pese embora o contratempo de não podermos estar presentes na reunião, mas esperando que tenhamos motivos para festejar e muito”, afirma o autarca socialista.
Rosinha destaca a importância deste titulo para a população, que considera ser “o justo reconhecimento de tantos e tantos anos de um trabalho com muitas histórias, há mais de um século”.
Além do mais, sublinha, “é o maior caso de voluntariado que, se calhar, existe ao nível do nosso país e, apesar de não ser dono da verdade, estou com mais de 90% de certeza que a UNESCO irá aprovar a nossa candidatura”.
O autarca deixa um elogio “à mulher campomaiorense”, por todo o trabalho “visível e cheio de arte”, assim como aos cabeças-de rua, “uma coisa que não está instituída, mas que se vai criando dentro daquilo que é o conceito da rua e da sua execução”.
A autarquia, um dos parceiros na liderança desta candidatura, é uma espécie de “pilar” para a realização do evento, assumindo a parte logística e articulando toda a organização com a associação das festas.
Mesmo que haja um parecer positivo, Luis Rosinha não se compromete com a realização do evento no próximo ano.
“Não ponho de parte, apesar de ser uma decisão do povo, mas o cenário atual, não nos leva a pensar em festas nos próximos tempos. É preciso contenção e se a festa é para os visitantes, havendo limitações, logo há condicionantes”, alega.
Mas se não acontecer no próximo ano, espera “que seja no outro”, assim, “as condições de saúde pública nos permitam”.
Até lá, é bem possível que o autarca meta também mãos à obra. “Eu fiz a promessa que vou começar a aprendizagem. Faço aqueles trabalhos mais simples como o torcido, o que fiz muito com os meus avós paternos, mas não tenho a arte que, principalmente, as mulheres têm nas mãos”, confessa.
Nesta entrevista, o presidente do município revelou também que “está concluído o projeto” para a criação do Museu da Flor, projeto que ainda só não avançou por causa da candidatura.
“Achamos que devíamos esperar por este reconhecimento e, só depois, faríamos a inauguração, dando oportunidade aos visitantes que queiram experienciar aquilo que é mesmo a nossa flor de papel”, menciona.
Agora, resta apenas esperar. Os campomaiorenses anseiam por fazer a festa e encher de orgulho a vila, o Alentejo e o país.
Se a candidatura for aprovada, este será o 6.º título da UNESCO a ser atribuído ao território do Alentejo e Ribatejo. Já estão classificados pela UNESCO o Centro Histórico de Évora e as Fortificações Abaluartadas de Elvas, como Património Mundial da Humanidade.
Já como Património Cultural Imaterial, a UNESCO distinguiu o Cante Alentejano e o Figurado de Barro de Estremoz, no Alentejo, assim como a Falcoaria de Salvaterra de Magos, no Ribatejo, enquanto o Fabrico de Chocalhos, baseado na tradição artesanal de Alcáçovas, em Viana do Alentejo (Évora), consta do Património Cultural Imaterial com Necessidade de Salvaguarda Urgente.