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Entrevista

Pianista Joana Gama evitou tocar no confinamento por causa dos vizinhos

28 jan, 2022 - 21:31 • Maria João Costa

Com o músico Luís Fernandes, a pianista acaba de lançar o disco “There’s No Knowing”. O álbum nasceu de uma banda sonora criada para a nova série de televisão “Cassandra”. A composição do disco decorreu no confinamento e ajudou a salvar a pianista das “agruras de estarmos fechados”

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“Ainda bem que o palco é aquele lugar mágico, onde se pode fingir que está tudo bem”, desabafa Joana Gama. Em entrevista à Renascença, a pianista que está a lançar um novo disco com o músico Luís Fernandes conta como é tocar para uma plateia de máscaras e como o projeto do novo disco ajudou a enfrentar as “agruras” da pandemia.

A artista que considera que “temos de reaprender a estar próximos e a não achar isso estranho”, explica que o novo disco, “There’s No Knowing” nasceu de um desafio de compor, pela primeira vez música para uma série de televisão. Enquanto que para os episódios de “Cassandra” tiveram de adaptar a métrica das músicas, no disco e nos concertos como o que dão este sábado em Loulé, tocam ininterruptamente durante 50 minutos. O público só aplaude no final.

Questionada sobre os efeitos da pandemia na cultura, a artista confessa que teve “cuidado” em não estudar piano 8 horas por dia, por causa dos vizinhos que estavam em casa a trabalhar, lamenta a situação difícil que muitos artistas, como ela, freelancers enfrentam ainda, mas tem esperança de que o Estatuto do Artista possa vir a minorar as “situações muito delicadas”

Como é que nasceu o disco “There’s no Knowing” que assina com o músico Luís Fernandes e que este sábado levam ao palco do Cine-Teatro Louletano, em Loulé, no Algarve?

“There's No Knowing” é o quinto álbum desta colaboração com o Luís Fernandes. Este duo de piano e eletrónica começou em 2013. Fizemos o nosso primeiro álbum em 2014 chamado “Quest” e desde então fomos fazendo projetos com outros músicos, lançando discos, fazendo concertos em várias colaborações, quer com ensemble, quer com o violoncelista Ricardo Jacinto, quer com os Drumming, um grupo de precursão.

Mas nunca abandonamos este formato, não só em concerto, como na criação de outros trabalhos, e agora em 2022 chega este “There's No Knowing” que parte da música para a banda sonora da série ‘Cassandra’ que tem a direção artística do Nuno M. Cardoso. É uma série televisiva com vários episódios filmados por diferentes realizadores que irá passar na RTP em breve.

O que está no disco é a música feita para televisão?

Nós compusemos a música para a série no início de 2021. Deixamos a música repousar e passados uns meses voltamos a olhar para esse material musical e demos-lhe uma volta de forma a transformá-lo num concerto e num álbum.

Porque é que se deixa a música a “repousar”?

Na altura em que compusemos a música para a série ‘Cassandra’ havia um lado funcional de corresponder às expetativas dos realizadores. Embora nunca deixássemos o nosso cunho autoral, havia esta função de cumprir determinado objetivo para a série. Neste caso, do concerto e do álbum, a música foi pensada como um todo.

É diferente, então, o que está no disco?

É um grande arco de cerca de 50 minutos. No disco está dividido em cinco temas, mas apenas por ser mais fácil aceder às diferentes secções, mas em concerto é um grande arco. Começa na primeira nota de piano e vai passando por várias fases até ao final. Em concerto temos um espaço cénico concebido pelo Frederico Rompante que está connosco desde o “Quest” e há uma ideia de imersão do público nesta música e no espaço vazio que a própria música contém.

Que exigência há ao compor para uma série de televisiva? É muito diferente de compor para algo que não tem uma finalidade?

É diferente. Há uma questão de timmings. De repente temos uma determinada secção e dizem-nos que tem de ter mais dois minutos. Como é que se desenvolve uma pequena seção de forma a ser interessante, mesmo que prolongada? Ou ao contrário.

Nós achávamos que o tema funcionava bem se fosse longo e afinal tem de ter só meia dúzia de segundos. Há esse lado funcional ainda que, ao contrário de muitos compositores que têm muito esta ideia de que a música é funcional e se lhes pedirem para compor um tango, uma valsa ou uma música de cabaré, eles fazem-no; no nosso caso não é isso que acontece. Quando o Nuno M. Cardoso nos convidou para fazer a música para os vários episódios da série era já ciente que nós tínhamos um tipo de música que é a nossa linguagem e que no fundo a série estava dentro deste ambiente que temos. Nunca foi a ideia de subverter a nossa música, mas sim que a série tivesse esse ambiente.

Tiveram de se adaptar à métrica das cenas de televisão.

Há esse lado funcional que é muito forte e há todo um trabalho de correr contra o tempo, porque são esses os timmings de cinema e televisão. A música é deixada para último porque as coisas precisam de estar filmadas e montadas. E há sempre muito pouco tempo. Foi bom ter esse contraponto.

Temos de reaprender a estar próximos e a não achar isso estranho. A primeira vez que fiz um concerto com público de máscara foi estranhíssimo, mas é algo a que nos habituamos muito facilmente.

Por um lado, ter essa pressa no início do ano com a série, e depois voltar à música e pensá-la com mais calma. Quando fomos gravar o álbum em agosto, no Centro Cultural Vila Flor que é um dos coprodutores já íamos com uma ideia bem definida do que queríamos gravar.

É a primeira vez que faz música para este contexto televisivo?

Para televisão, sim. Ainda que já tivéssemos trabalhado com cinema previamente, com filmes do Eduardo Brito e também tínhamos feito há pouco tempo a banda sonora da peça “Os Três Irmãos” do Vitor Hugo Pontes com quem vamos trabalhar de novo este ano. Já havia esse lado de sabermos adaptar as músicas aos contextos e o Luís também, a solo, já fez várias colaborações com o cinema. É interessante, é um estímulo diferente e leva-nos por caminhos que se calhar, sozinhos não íamos explorar.

No caso do concerto, é como se fosse uma só música do princípio ao fim? O público não bate palmas no meio?

Sim. Nós, desde o início, nunca tivemos palmas a meio das músicas. Apesar de no nosso primeiro álbum serem várias músicas bastante diferentes entre elas, eram temas isolados, mas que eram tocados de forma continua, neste caso a música vai-se desenrolando.

Há elementos que se vão repetindo ao longo do concerto, portanto pensamos nisto como uma grande peça de cerca de 50 minutos, mas que tem secções mais calmas, secções mais rápidas, mais fortes, mas que, é na verdade, um só elemento que se vai metamorfoseando ao longo do concerto.

No aspeto criativo, este último ano de pandemia foi profícuo? Tiveram mais tempo?

Sim, na verdade foi precisamente no confinamento no início do ano passado que tivemos a trabalhar para esta série. Foi um tempo que conseguimos aproveitar. Aliás, eu estava a fazer duas coisas em simultâneo. A música para a série, com o Luís, e também a pensar o meu espetáculo "As árvores não têm pernas para andar" que tinha estreado em outubro de 2020, mas numa altura de uma overdose de concertos e atividades do que tinha sido cancelado ou adiado do início de 2020.

Sei que é a minha profissão, mas também sei o quão intrusivo é o som de um piano. Portanto, houve esse cuidado.

O espetáculo tinha estreado e eu senti que ainda o precisava de repensar. Portanto, esse confinamento de 2021 foi usado para estes dois projetos. Felizmente foi possível estar distraída e ocupada com este trabalho que é uma extensão da vida e do qual eu gosto muito, para poder lidar com estas agruras de estarmos fechados em casa e ter o mundo no estado em que está.

Como é que a pianista lida com o silêncio que o isolamento da pandemia impôs?

Eu lido muito bem com o silêncio. Aliás, quando não estou a tocar piano, muitas vezes estou em silêncio. Não consigo ouvir música porque preciso mesmo do silêncio e de ter espaço para os pensamentos enquanto estou nas diversas tarefas da vida. O que aconteceu é que eu tive um cuidado para também não tocar demasiado em casa, porque sabia que os vizinhos estavam em casa, quer a trabalhar, quer a descansar e tive essa consciência de ter esse cuidado. Portanto, não estudar oito horas, como havia alturas em que o fazia, e que faço quando estou a preparar mais ativamente concertos de piano. Tive esse cuidado. Sei que é a minha profissão, mas também sei o quão intrusivo é o som de um piano. Portanto, houve esse cuidado.

Tem projetos para a infância e projetos para publico mais velho. É neste todo que faz sentido ser pianista no século XXI?

Para mim sim. Eu vou procurando o meu caminho e assuntos que me interessam perseguir e vou sendo surpreendida com o que vai acontecendo.

Acredito que haja pianistas no século XXI que se revejam a tocar concertos de Beethoven ou sonatas de Chopin e isso não tem mal nenhum. Acho que é importante que cada um faça o que sente que quer fazer, que partilha a música que quer partilhar e que sente que toca bem e que acha que faz sentido para si.

Não é o seu caso.

No meu caso, quando terminei em 2005 o curso superior na Escola Superior de Música de Lisboa, ainda achava que o meu percurso seria fazer concertos de piano. Na altura, achava impossível não ser professora e dar concertos. Teria sempre de ser professora para ter uma base sólida de vencimento ao fim do mês, e depois eventualmente conseguisse fazer um outro concerto.

Desviou-se desse caminho.

O que a vida me mostrou, e estamos em 2022, é que eu já não sou professora há 10 anos, e o meu trabalho foi-se diversificando ao ponto de hoje em dia fazer concertos de piano, ser curadora de festivais como o Hans Otte Sound of Sounds, fazer espetáculos para crianças, manter o meu duo de piano e eletrónica. Diversifiquei o trabalho, não com o intuito de ter vários campos de ação de uma forma calculista, mas no sentido de perceber que as coisas vão fazendo sentido.

É um privilégio para si?

É muito bom, muito prazeroso e muito trabalhoso também. São muitos projetos e tenho de dividir a atenção por várias áreas. É trabalhoso, mas é muito bom, e isso sou muito agradecida pelo percurso que vou fazendo e do apoio que vou tendo das instituições que confiam no trabalho e o apoiam.

Como olha para o setor da cultura nestes últimos dois anos, com a pandemia? Como é que vê a situação dos seus pares?

Vimos situações, e continua a haver situações, muito delicadas especialmente para quem é freelancer como eu. Os cachês são muito baixos, o trabalho é sazonal. Por exemplo, os técnicos que trabalhavam nos festivais de verão que foram todos cancelados, ou mesmo bailarinos cujos cachês são muito pequenos e que trabalham sempre com diferentes associações e instituições que de repente tiveram produções totalmente canceladas, por alguém estar infetado.

Eu lido muito bem com o silêncio. Aliás, quando não estou a tocar piano, muitas vezes estou em silêncio. Não consigo ouvir música porque preciso mesmo do silêncio e de ter espaço para os pensamentos enquanto estou nas diversas tarefas da vida.

Um trabalho que ia durar três meses desaparece por completo. Nesses casos as pessoas ficam muito à mercê do imprevisto e é muito complicado, especialmente em famílias em que são casais, os dois freelancers, com filhos. Sei que pode ser muito difícil.

Como vê a criação do Estatuto do Artista?

Esta questão do estatuto do artista pode ser muito importante e pode fazer a diferença, especialmente em casos como esses em que as pessoas estão mais desprotegidas.

No meu caso, eu vou tentando sempre ter algum cuidado. Tento antecipar coisas que possam vir a acontecer. Se eu não poder trabalhar durante alguns meses, ter esse cuidado de não ficar mal, mas sei que muitas vezes as situações não são fáceis e que as situações familiares não são todas iguais. Para algumas pessoas é difícil serem precavidas. Esta situação é delicada para muitos.

O disco “There's No Knowing” é um projeto com seis coprodutores. Andam em concertos agora pelas salas desses produtores. Como é dar um concerto para o público de máscara?

Hoje é um milagre ter pessoas sentadas ao lado umas das outras. Ainda ontem uma amiga que foi ao cinema me dizia que ter alguém sentado ao lado já lhe parecia estranho. Passamos de não poder ir aos espetáculos, a poder ir com duas cadeiras de intervalo, depois com uma, agora nenhuma. Nós próprios temos de reaprender a estar próximos e a não achar isso estranho. A primeira vez que fiz um concerto com público de máscara foi estranhíssimo, mas é algo a que nos habituamos muito facilmente.

As pessoas ficam muito à mercê do imprevisto e é muito complicado, especialmente em famílias em que são casais, os dois freelancers, com filhos. Sei que pode ser muito difícil.

A vitória de podermos levar a cabo estes concertos já é, só por si, valioso. Nós não termos de usar máscara em palco é ótimo. Até isso, quando foi no final de 2020, ainda havia essa questão de eventualmente termos de usar máscara em palco. Mas ainda bem que o palco é aquele lugar mágico onde se pode, ainda assim, fingir que está tudo bem.


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