04 fev, 2022 - 23:02 • Maria João Costa
O grande público conhece o seu rosto da televisão, e ela não se preocupa com isso. Pelo contrário. Sandra Barata Belo confessa que as suas participações em telenovelas como Nazaré e séries como A Família Galaró são responsáveis pela sua visibilidade pública. Não menos importante foi ter vestido a pele de Amália, no filme de Carlos Coelho da Silva, de que muito se orgulha, embora admita que se fosse hoje faria algumas coisas diferentes.
Em entrevista à Renascença, a atriz confessa que já esteve “para desistir muitas vezes” da representação devido às “angústias normais da profissão”. Para já, resolveu experimentar dar o salto para o outro lado e estrear-se na encenação. “Cochinchina” é o nome da peça que apresenta sábado em Castelo Branco e que chega a Lisboa, ao Teatro Meridional, a partir de dia 9 de fevereiro.
“Apaixonada por livros”, esta leitora atriz resolveu adaptar o livro “Princípio de Karenina” do escritor Afonso Cruz ao teatro. Diz que os livros lhe “oferecem liberdade”, admite que está um pouco “nervosa e apreensiva” com a sua estreia neste papel fora do palco, mas tem consigo um elenco de luxo com Margarida Vila-Nova, Vítor d'Andrade e Patrícia André.
Este espetáculo de teatro "Cochinchina" parte do livro do escritor Afonso Cruz intitulado "Princípio de Karenina". O que a levou a adaptar ao teatro a literatura contemporânea portuguesa? É a leitora a querer levar ao palco a escrita nacional?
Sou apaixonada por livros! Alguns que leio fico muito inquieta, com vontade de ultrapassar aquela obra, de a levar para outros sítios. Nem que mais não seja para os meus pensamentos, em diálogo comigo própria, com aquilo que é a minha existência. Depois há uns assim, que são mais inquietantes que outros. Foi o caso do "Morreste-me" de José Luís Peixoto que na altura li com uma amiga minha, a Cátia Ribeiro e as duas pensamos que poderia ser um bom monólogo.
Foi o primeiro livro de um escritor contemporâneo que trabalhou para teatro, esse de José Luís Peixoto?
Tivemos esse gosto de adaptar o livro a um monólogo feito por mim e encenado por ela. O "Morreste-me" era uma carta, uma declaração de amor de um filho para um pai. Mais do que uma história triste, fala de momentos bonitos em família, do amor em família, daquilo que é a recordação da infância, dos sítios perdidos da memória. Foi um espetáculo que gostei muito de fazer. Depois mais tarde li "Carta de uma Desconhecida" do Stefan Zweig que não deixa de ser bastante atual e pertinente.
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O Stefan Zweig é um escritor que gosto muito, porque tem uma simplicidade ao falar de coisas muito polémicas e tão íntimas da Humanidade. Em a "Carta de uma Desconhecida" deparei-me outra vez com o tempo passado e presente, como está quem escreve a carta, como fica quem a recebe. Neste caso é uma mulher que decide matar-se por amor, e decide escrever esta carta de amor a um homem que nunca a conheceu. Nesse momento percebi que estava perante uma trilogia de cartas de amor e morte.
Agora adaptou o livro do Afonso Cruz também no âmbito dessa trilogia?
Procurei um terceiro livro, uma terceira carta que viesse encerrar a trilogia e li "Princípio de Karenina" e não tive a menor dúvida que seria aquela obra a ser adaptada. O Afonso Cruz é um escritor de que gosto muito. Felizmente no nosso panorama nacional e contemporâneo temos muitos bons escritores. Muitos deles estão a ser adaptados quer para teatro, quer para cinema e séries.
"Princípio de Karerina" é uma longa carta de um pai a uma filha que desconhece. Ao mesmo tempo é a história de uma viagem e do encontro com o desconhecido
É muito difícil falar do livro e da peça porque vão a muitos sítios, e isso é que é inquietante. Quando li o livro nunca imaginei a volta que aquilo fosse dar. Começa num Portugal conservador, na altura da Guerra Colonial, do Estado Novo e vai acabar do outro lado do mundo, no Camboja e no Vietname que é aquele território que se chamava no passado Cochinchina. Entrei de tal forma outra vez em diálogo que quis adaptar a teatro esta carta. Mais uma vez é o amor, um pai que decide partir em busca de uma filha que nunca o irá conhecer, porque a morte chega primeiro. Temos aqui vários elementos que são comuns às três obras. São livros literários e são cartas.
Trabalhou o texto com o Afonso Cruz?
Não (risos). Eu quando li o livro, mandei uma mensagem ao Afonso e disse-lhe que estava completamente perturbada, no bom sentido, com o livro e perguntei se o poderia adaptar. Ele disse-me: "Força, Sandra! Acho que sim. Deixa-me muito feliz e contente!" e pronto, depois tive uma ou duas conversas com ele. Já tinha grande parte do texto adaptado e trocamos algumas impressões. Quando o Afonso Cruz for ver, vai ser uma surpresa também para ele.
Acha que vai buscar estes livros porque sente falta de textos dramatúrgicos deste género para serem representados em português, ou é a leitora apaixonada que quer partilhar através da arte do teatro as suas boas leituras?
Acho que é mais a segunda ideia! Li algumas peças, mas o livro, por ser literatura, por ser uma história que não está adaptada a nada, deixa tudo em aberto e dá liberdade para a partir dali poder adaptar. Claro que nem todas as obras dão, e algumas serão mais fáceis que outras. Aqui interessa por exemplo, serem na primeira pessoa. Ajuda muito.
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Aparecerem outras personagens em vários tempos e isso também ajuda e traz complexidade, cena e antagonismo à peça. Isso é tudo muito rico para adaptar a teatro, para haver drama. Cada vez mais há escritores que escrevem e ganham prémios com textos escritos mesmo para teatro. Não sei se é por aí. A mim, os livros oferecem esta liberdade.
A Sandra optou por não entrar como atriz neste espetáculo. Poderia ter tido essa "tentação", mas preferiu assumir este papel de estar de fora. Como é pensar o espetáculo para outros atores, escolher elenco, fazer esse trabalho de bastidores?
Foi muito interessante. A "Carta de uma Desconhecida" por exemplo, eu adaptei, mas depois pedi à Patrícia André para encenar, porque eu não podia fazer tudo. Não acredito nisso. Mas agora quis mesmo estar de fora a ver, crescer com eles e naquele exercício ir crescendo também. A Patrícia André acabou por ser também uma das atrizes.
No início era para ser só um monólogo para um homem. Foi assim durante meses, diria até durante um ano. Eu li o livro no final de 2018 e foi uma ideia que me acompanhou durante algum tempo. Depois é que comecei a perceber que havia ali personagens que eram tão giras de se fazer, e de não se perderem, que achei que era mais interessante se tivesse duas atrizes. Então os próprios atores saltam de personagem em personagem. Mas é tudo visível, é sem truques e à frente do espetador. É essa a dinâmica que procurei trazer e por isso quis ficar de fora.
Sentiu-se bem no papel de encenadora?
Sabia o que queria, mas claro que estava um pouco nervosa e apreensiva por ser a minha primeira encenação e por ter atores desta dimensão e peso nas minhas mãos, mas estava convicta das minhas ideias. De facto, tinha muitas ideias para explorar e os atores foram pegando nessas ideias e levando e acrescentando outras novas. Há aqui uma criação de todos, mas a adaptação foi uma ideia que me surgiu logo quando comecei a ler o livro.
Faz sentido este caminho de encenadora na sua carreira?
Sim, gosto muito. Já sou atriz há muito tempo e é natural que procure ir para outros sítios dentro daquilo que é a minha área do teatro, televisão, cinema e representação. É natural que tenha vontade de ir para outros sítios, como dar aulas. Gosto imenso dessa partilha com os jovens no pensamento sobre os textos e as cenas. É um sítio que gostei muito de estar.
Gostei muito de estar de fora, mas não quer dizer que não tenha na mesma prazer de ser atriz. É um lado que me descansa, que tenho imenso gozo, e emociono-me imenso com as coisas que criamos. Foi muito rico para mim este processo, enquanto pessoa e enquanto atriz. Aprendi imenso enquanto criadora.
E tem saudades de representar?
Sim, mas a minha cabeça não está virada para aí agora. Estava virada para estar de fora e estar a conduzir e a cuidar deles. Há aqui um cuidado que gostei de ter tido com aqueles atores e equipa artística. Mas sim, continuo a gostar de representar e estou com vontade de fazer outras coisas em representação
Televisão, cinema, teatro?
Eu gosto dos três. Agora estou mais ligada ao teatro por causa deste projeto e eu deixo-me contaminar com aquilo que está à minha volta. Mas cinema, televisão são sempre muito bem-vindos porque são processos diferentes, são matérias-primas diferentes, por isso gosto das três áreas.
A televisão dá-lhe uma exposição pública diferente do teatro. Isso é para si, confortável?
Sim, eu gosto desse lado de que as pessoas conheçam o meu trabalho e a televisão é positivo nesse sentido. Graças à televisão, o meu trabalho é conhecido pelo grande público. Quando eu faço o "Morreste-me" ou a "Carta de uma Desconhecida" que eram praticamente monólogos meus, tive boas salas. Sei que é também por causa do reconhecimento público.
As pessoas conhecem-me e de alguma forma gostam do meu trabalho e sei que a televisão é a responsável máxima por isso. Claro que o cinema dá mérito, dá confiança e dá prestígio. Agora quando estreamos o "Cochinchina" em Loulé a 15 de janeiro tivemos 90% da sala composta o que é muito bom para teatro, porque obviamente há ali nomes que as pessoas conhecem da televisão, do cinema e do teatro. Tudo isso junto é bom para o público e para nós.
Quanto olha para um filme como Amália que lhe deu grande visibilidade pública e pelo qual venceu um Globo de Ouro como Melhor Atriz de Cinema, como é que o vê com o lastro do tempo que passou?
Foi há já algum tempo! O grande público conheceu-me aí. E foi um trabalho que naquela altura correu bem, a maioria gostou. Se fosse hoje faria algumas coisas diferentes, obviamente, mas acho que aquilo que foi feito na altura esteve bem, pesquisei, preparei-me e fiquei muito feliz. Estava muito nervosa quando estreamos o filme, porque era a Amália, não era uma personagem, era uma pessoa que existiu e que existe ainda na memória coletiva. Tinha uma grande responsabilidade e receio de falhar ou que as pessoas não gostassem.
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Felizmente correu bem e aquele mérito que há pouco falei que o cinema confere, acho que vem muito por aí. Em relação a mim, sabem que é a atriz que fez de Amália no cinema. Foi um excelente cartão de visita.
A Sandra sempre quis ser atriz?
Sim, quero dizer, desde que me lembro de fazer qualquer coisa. Escolhi ainda na adolescência ser atriz. Comecei a estudar teatro muito cedo. Mas já houve alturas em que não quis ser! Já estive para desistir muitas vezes, mas desde a adolescência que o caminho foi por aí.
O que é que a levava a desistir de ser atriz?
Porque é uma área muito instável, não só em termos financeiros, mas provoca-nos muitas dúvidas e ansiedades. Há que saber gerir muitos aspetos e às vezes é difícil. Mas isso também se encontra em todas as áreas, não é só neste lado.
Acho que é um bocadinho transversal. Em todas as áreas, a determinada altura, as pessoas pensam em desistir ou mudar de área, porque estão fartos disto e daquilo. Como atriz, com as angústias normais da profissão, de vez em quando dá-me vontade de desistir e ir fazer outra coisas.
Como foram estes quase dois anos de pandemia. Agravou-se esse sentimento de deixar a profissão?
A pandemia obviamente que acentuou, mas eu no início de 2020 engravidei, portanto passei o ano grávida. O meu filho nasceu em dezembro de 2020, portanto abandonei alguns projetos que estava a fazer por causa da pandemia, mas não aceitei outros que podia fazer estando grávida. Apareceram algumas oportunidades para fazer, estando grávida.
Mas por causa da pandemia e estar grávida não quis arriscar. Depois em 2021, as coisas já estavam um bocadinho instáveis, com datas sobrepostas, ou paragens forçadas com adiamentos, então isso atrapalhou. Quando começamos a voltar as coisas atropelavam-se e houve de repente um boom de trabalho que fez com que tivesse perdido coisas. Mas acho que as coisas estão num bom caminho.
O público deve voltar aos espetáculos mais confiante?
A cultura é segura, é seguro ir a espetáculos. As pessoas precisam da cultura. Há aquela frase que muitas vezes se ouve, "a cultura precisa das pessoas", sim, mas as pessoas também precisam da cultura, de espetáculos, concertos, ver exposições. Se alguma coisa de positivo esta pandemia nos trouxe foi perceber que somos mais pobres se não temos coisas para fazer à noite para ir ocupar a cabeça e ir pensar outras coisas com espetáculos e uma vida cultural ativa.