20 mai, 2022 - 20:30 • Maria João Costa
Anne Weber partilha o primeiro nome com a protagonista do livro com que venceu o Prémio Livro Alemão 2020. “Annette, Epopeia de Uma Heroína” é agora publicado em português, com uma tradução de Helena Topa, pela D. Quixote e a autora esteve em Lisboa.
A obra conta a história de uma vida real que se fosse ficcionada não seria tão verosímil. Nascida na Alemanha, mas a residir em França, Anne Weber cruzou-se com a sua fonte de inspiração por acaso, como conta em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença, numa conversa em francês.
Anne conheceu a outra Anne, a Beaumanoir, num festival de cinema quando esta se levantou para contar que pertenceu à Resistência francesa na II Guerra Mundial, tinha salvo judeus dos nazis e que defendeu a independência da Argélia. A história fascinou Anne Webber que depois de muito pensar, encontrou na epopeia o estilo para contar a história desta heroína.
“Annette, Epopeia de Uma Heroína” é uma obra que conta a história de uma vida real. Como é que se cruzou com sua protagonista? Como nasceu a vontade de escrever?
Eu fui convidada, há uns anos, para um pequeno festival de cinema documental, no sul de França, onde o público no final podia falar e fazer comentários. De repente levantou-se uma senhora muito velhota, com os cabelos muito brancos, os olhos muito azuis e muito curvada. Era uma senhora muito baixa que falava de forma muito viva e interessante. Ela disse que tinha pertencido à Resistência francesa, e, eu fiquei imediatamente fascinada por ela, porque nunca tinha conhecido alguém que tivesse estado na Resistência.
A história impressionou-a logo?
Foi um amor à primeira vista! Ela tinha então 74 anos. Ela ficou para o jantar, e contou-me um pouco a sua história, mas eu fiquei com imensa vontade de saber mais, voltei umas semanas depois e tornamo-nos amigas, acho que posso dizer isso. Contudo, nessa altura não estava a pensar em escrever um livro. Mas foi uma sorte a ter encontrado. Não fui à procura de alguém que tenha estado na Resistência!
A Anne Beaumanoir tinha nascido em 1923 na Bretanha e, conta no livro, ela envolveu-se na causa da Resistência desde muito cedo.
Grosso modo, a história que ela me contou é que entrou muito jovem para a Resistência. Aos 19, 20 anos era clandestina num reduto comunista da Resistência, em Paris, durante a ocupação alemã. Ela salvou dois adolescentes judeus, na realidade eram 3, porque havia um bebé que também foi salvo graças a ela. Depois da Resistência, ela tornou-se médica, criou uma família, teve filhos, mas quando chegou a guerra na Argélia, nesse momento, ela sentiu-se de novo envolvida, desta vez com o movimento independentista argelino e foi condenada a 10 anos de prisão por um tribunal militar francês.
É uma vida que se percebe que foi intensa, e heroica ao mesmo tempo. Foi por isso que decidiu usar a forma clássica da epopeia para a contar? Como é que chegou a esta fórmula literária tão pouco comum hoje em dia?
Isso foi uma questão que me coloquei logo no início. Como é que posso contar a vida de alguém que está à minha frente, que é real, que não é uma personagem que eu acabo de inventar? É alguém que está aqui, e que me confiou a sua história. Perguntei-me se eu poderia simplesmente servir-me desta história para os meus fins literários, ou seja, fazer uma espécie de romance histórico, onde teria forçosamente que inventar os detalhes e onde teria de escrever os diálogos. Teria de pôr palavras na boca dela que ela nunca terá dito. Ou poderia transformar completamente a sua história, dar-lhe outro nome e fazer outra coisa. Mas isso, eu não via porquê!
Romancear esta história também me repudiava, porque eu já a considerava bastante extraordinária, bela e aventurosa e não via qual a razão para romancear isto. Então, pensei o que poderei fazer com esta vida? Ao mesmo tempo, eu também não era uma biógrafa. Não escrevia biografias, não tinha a pretensão da objetividade, nem de ser exaustiva. Então como poderia fazer se queria fazer uma obra literária? Aí, lembrei-me felizmente dessa forma literária antiga que é a epopeia, na qual são contadas, tradicionalmente, os atos corajosos dos heróis, neste caso de uma heroína.
A Anne, Annette como lhe chama no livro, chegou a ler o seu livro sobre ela?
Sim! Eu comecei por escrever em alemão, e depois fiz imediatamente uma versão francesa. Faço sempre isso. Escrevo duas versões. Dei-lhe a ler a versão francesa, mas nessa altura nenhuma versão tinha sido ainda publicada. Ela leu o manuscrito francês e disse-me: “Ah, é formidável! Mas não sou eu!" (risos) Ela não se reconheceu e eu fiquei perturbada no início porque pensei que tinha feito um retrato dela, mas depois pensei melhor, e verifiquei que a questão é que ela não se via como uma heroína. Ela achava que qualquer um teria feito o mesmo no seu lugar!
No livro percebemos que ela depois de ter ido viver para Marselha, criado uma família, parece ter deixado as causas. Contudo, a questão da Argélia desperta nela uma inquietação, como se tivesse voltado a escutar o seu coração. Foi isso que a levou a envolver-se de novo numa causa?
Acho que é algo que lhe está na massa do sangue. Ela tem uma sensibilidade muito apurada para a injustiça, que a revolta. O seu compromisso com a Argélia é a continuação da sua ação na Resistência francesa. Durante a Resistência foram os alemães que ocuparam a França, e outros países. No caso da Argélia, é a própria França que coloniza, e ocupa os países do norte de África. E a Argélia fazia parte de França, nessa altura, mas havia um tratamento muito desigual entre a população francesa ou argelina, indigente, como se dizia na época.
Ela compromete-se de novo na causa quando vê o exército francês a torturar prisioneiros na Argélia, a usar os métodos da Gestapo. Para ela, que tinha lutado contra isso, estar a ver a França a usar os mesmos métodos, era impossível. Era mesmo pior, porque ela pertencia ao lado dos agressores e torturadores!
Este retrato real da Annette podemos dizer que tem alguns paralelismos com o que estamos a assistir agora em plena Europa, com a invasão militar russa na Ucrânia?
Claro. Ela teve essas duas grandes fases de compromisso político. Por um lado, foi a invasão de um país estrangeiro e vizinho, e a submissão, ocupação e invasão militar de outro país. Ela lutou contra isso, contra o facto de outro país invadir e submeter a população à sua vontade e forma de pensamento. É exatamente o que se passa agora, entre a Rússia e a Ucrânia.