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Entrevista

Europa precisa de políticos com ideias e formação sólida, aponta Pérez-Reverte

23 set, 2022 - 07:09 • Maria João Costa

O escritor espanhol acaba de editar em português o livro “Linha da Frente”, um romance de 700 páginas sobre a Guerra Civil Espanhola onde lhe interessou olhar a condição humana. Arturo Pérez-Reverte avançou para o livro, porque quer deixar um testemunho e combater o populismo dos políticos europeus.

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Compara o seu prazer de escrita, com o de uma criança que continua a brincar. Aos 71 anos, o escritor espanhol Arturo Pérez-Reverte escreveu uma obra de 700 páginas sobre a Guerra Civil Espanhola. “Linha da Frente” (Ed. ASA) acaba de chegar às livrarias portuguesas. Mais do que um fresco sobre a Guerra Civil, e uma batalha em particular, a obra traça o retrato da condição humana de quem foi para a guerra.

Dos dois lados da trincheira falava-se a mesma língua, diz Pérez-Reverte, eram “vizinhos” recorda o escritor que em entrevista ao Ensaio Geral da Renascença conta que avançou para este livro, porque quer deixar o seu testemunho. Os seus pai, tio e avô combateram na Guerra Civil por isso, tem relatos na primeira pessoa que pensa serem importantes para combaterem os “argumentos populistas de demagogia fácil” hoje usados por políticos de Espanha, Portugal e Europa. São, critica o escritor, “uma geração que não tem uma formação intelectual. Carecem de ideias sólidas”.

Em Linha da Frente conta a história da Guerra Civil Espanhola. As palavras guerra e batalha que tanto usa, são palavras femininas, mas a guerra e as batalhas são muitas vezes associadas à força dos homens. Contudo, quis começar este romance com a história de mulheres que estiveram na guerra, porquê?

Na minha opinião, a mulher foi a grande perdedora da Guerra Civil Espanhola. Nas últimas décadas a condição da mulher tinha avançado e na guerra civil regrediu. A mulher vencida pela reação, voltou a ser a mulher prisioneira do confessor, do padre, do marido, da cozinha e dos trabalhos domésticos. Foi de novo empurrada para o recanto de onde tinha tido tanto trabalho para conseguir sair. Por isso achei que era justo começar com as mulheres este romance!

Na guerra Civil não houve mulheres a combaterem na linha da frente, então inventei uma unidade fictícia responsável pelas comunicações. Era mais credível para colocar ali as mulheres, porque me interessava muito o olhar feminino nesta história.

Já muito se escreveu sobre a Guerra Civil Espanhola. O que o levou a escrever também sobre o tema?

A Guerra Civil Espanhola foi um assunto resolvido de uma forma muito razoável, e civilizada pelos espanhóis nos anos 70. Quando morreu Franco, deu-se a reconciliação política. As feridas graves estavam saradas.

A questão é que agora chegaram ao poder em Espanha, em Portugal e na Europa uma geração de políticos que não têm uma formação intelectual muito sólida. Carecem de ideias solidas.

Usam como ferramentas argumentos populistas de demagogia fácil e claro, dizem que Franco e o franquismo continua vivo. Gostam muito desse tipo de argumentos. Estão a reabrir feridas que estavam sanadas. Falam da Espanha nobre e boa contra a Espanha fascista. Isso não foi assim! Por isso quis escrever este romance.

Acha que pode influenciar o pensamento político?

Claro que não vou mudar nada, porque sou só um escritor, mas pelo menos quero dar testemunho de que a Guerra Civil não foi aquilo que os políticos agora contam.

No romance olha para os vários lados das trincheiras. Não toma qualquer partido. Mostra a condição humana que há em todas as batalhas.

Sim, não é um romance de ideias. Sobre as ideias já se escreveu muito. É claro que a República era legítima, e o Franquismo era ilegítimo. Isso ninguém o discute! Mas isso que é tão preto no branco, quando olhas para o ser humano já não é assim tão fácil.

Porquê?

Nem todos os que lutavam com Franco eram fascistas, nem todos os que lutavam pela República eram de esquerda. Houve uma guerra muito complexa.

O meu pai e o meu tio que eram jovens de boas famílias, de uma burguesia mediterrânica, bem na vida, lutaram pela república. Mas o meu sogro que era um jovem militante de esquerda, lutou com Franco! É aqui que a guerra civil tem estes azares e imprevistos.

Foi justamente isto que quis contar, aproximar-me do ser humano, porque já houve muitos romances sobre ideias, teorias, os grupos dos bons e dos maus, mas eu quis precisamente dizer que quando olhamos para o ser humano o bom e o mau diluem-se.

Foi beber a essa experiência familiar o testemunho, mas também foi repórter e viu muitas guerras no terreno. Usou essa memória?

Eu vi guerras de verdade, e fiz oito guerras civis das muitas que cobri como repórter, vi pessoas a serem heróis de manhã e miseráveis à tarde. Eram as mesmas pessoas. O ser humano é assim, e foi isso que quis trazer com o meu romance.

Como foi o processo de escrita? Que fontes usou?

Este romance apoia-se em três fontes básicas. Uma é a leitura. Li tudo o que pode sobre a Guerra Civil, romances, ensaios de História, tudo o que me interessou. Tenho uma boa biblioteca e recorri a ela.

Depois, outra coisa, foi o facto de o meu pai, o meu tio e o meu avô fizeram a Guerra Civil Espanhola. Eu sou a geração que teve acesso direto aos testemunhos reais. A mim, ninguém contou terceiras pessoas. Contaram-me os protagonistas.

Depois tenho uma terceira fonte que é a minha própria biografia. Fiz várias guerras durante os 21 anos como repórter, 8 foram guerras civis, como Angola, Moçambique, Salvador ou Nicarágua. Eu tenho uma experiência importante de como é o ser humano na guerra civil. É uma visão direta. Sei como cheira, como soa, e como as pessoas olham para a guerra.

Mostra neste livro o absurdo da guerra. No livro escreve que quem combate são homens que falam a mesma língua, que chamam pela mãe no mesmo idioma na hora da morte. Esse é o lado negro da Guerra Civil Espanhola?

Esse é um dos muitos absurdos. A guerra civil tem um fator especialmente cruel. É que a guerra civil é entre vizinhos que se conhecem. Quando alguém se confronta com quem conhece é muito mais cruel do que quando não conhece.

A questão é que haverá sempre memórias. ‘Tu eras o meu vizinho, tu roubaste-me uma cabra, tu casaste com a mais bonita da aldeia, o teu pai era rico e o meu era pobre’. São esses os rancores entre pessoas que se conhecem. Então, uma guerra civil é sempre um ajuste de contas.

É sempre o passar uma fatura ao vizinho! E isso acarreta todo o rancor e a violência acumulada pelas famílias durante gerações e manifesta-se. É tudo isso que faz a guerra civil particularmente sangrenta e cruel e a Guerra Civil Espanhola teve essas caraterísticas.

No livro incluiu a história dos jornalistas estrangeiros que fizeram a cobertura da Guerra Civil Espanhola. Eles são o seu toque mais pessoal na novela? É o recordar do seu tempo como repórter?

É um hino à minha profissão e aos meus companheiros. Mas um romance levanta questões que um escritor tem de resolver de foram eficazes. Eu precisava por isso de um olhar de fora. Como é que os de fora viam toda essa brutalidade selvagem, esses valores, essa crueldade, todo esse espanto. Por isso fui buscar três jornalistas estrangeiros cujo olhar permite ver-nos desde fora.

Usa muitas onomatopeias na escrita. Dão ao leitor mais o ambiente verdadeiro da guerra?

Cada romance elementos determinados para que seja eficaz. Neste caso, num romance de guerra onde o ruido e o silêncio são importantes, então joguei com a linguagem para que o leitor possa perceber não só o som da bomba, mas também algo que ele consiga associar ao ruido da guerra. É o crackkk, bang-bang dos tiros. Tento isso tudo com a limitação que a linguagem escrita tem. A minha ideia é que o leitor se sinta lá, que não seja uma testemunha exterior que está a ver um espetáculo. Quero que o leitor se sinta dentro da batalha, ouça, cheire, sinta a guerra, sinta a incerteza, o medo, o asco e a dor da guerra. Espero ter conseguido.

Podemos dizer que no seu livro não há heróis?

Claro, não são heróis como os dos monumentos ou nos filmes. Há heróis, todos o são de alguma forma. Os legionários que lutam nas aldeias, os milicianos que atacam, claro que há heroísmo! Mas é um heroísmo natural, são pessoas normais que cumpre o seu dever, ou o que acha que é o seu dever!

Nesse sentido, são heróis, mas podemos ser tu, eu, o teu irmão. Não são personagens míticas e estranhas que deixem do céu, de uma nuvem, com asas e luzes. Não! Somos nós, cumprindo a nossa obrigação, ou aquela que achamos que é a nossa obrigação.

Vemos a Europa hoje confrontada com a guerra na Ucrânia. Também aí há muitos heróis na Ucrânia?

Em todas as guerras! Desde Troia até hoje é sempre a mesma história. Mudam os meios técnicos, a tecnologia, os drones, os misseis, mas é o mesmo. O ser humano que a vida retira do seu lugar de conforto e o coloca num conflito dramático, é o herói de verdade.

Falo dos que enfrentaram o Titanic, um tsunami, a pandemia, dos bombeiros num incêndio, do médico num hospital, falo de todos os que são confrontados com o lado obscuro da vida.

Nesse sentido, há heróis na Ucrânia e também os há na Rússia. Também os russos, que são, entre aspas, os maus da fita, também têm heróis.

Justamente aquilo que tento muitas vezes fazer com os meus romances é que o leitor perceba que quem tem na frente, embora não pense o mesmo, e que até o tenha de matar, também tem virtudes. São seres humanos a quem as circunstâncias os colocaram naquele lugar.

O problema que temos os latinos, sobretudos nós os ibéricos, é que nunca reconhecemos uma virtude no adversário, nem um defeito nos nossos. Isto é um grave pecado histórico, e este romance tenta combater e opor-se a isso.

Escreve hoje por puro prazer da escrita?

Eu sou um escritor profissional. O meu prazer, a minha vida, o meu trabalho é contar histórias. Tenho a vida resolvida. Já não preciso ganhar dinheiro com os livros, mas um romance significa um ano, ano e meio de pensar, ler, viajar e viver. É como ser criança e continuar a brincar. Na realidade, sou isso! O tipo de escritor que eu sou, é uma criança que continua a brincar.

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