05 abr, 2016 - 16:26 • Marta Grosso
Maria João Nobre e Sara Rodrigues correram o país e encontraram casos fascinantes de relações entre felinos e os seus donos. Lua, por exemplo, foi atropelada e arrastou-se até casa para morrer nos braços dos seus donos.
Cuidadores ou cuidados, terapeutas ou “simples” animais de companhia, em “Sete Vidas” (ed. Esfera dos Livros) descobrimos que os gatos são mais do que podemos imaginar. “Podem ensinar-nos lições valiosas sobre o respeito pelo próximo e que o amor e o afecto não se podem forçar”, diz à Renascença Maria João Nobre.
O que vos levou a escrever este livro?
Tanto eu como a Sara sempre fomos apaixonadas por gatos e tivemos gatos a vida toda. No meu caso, a paixão foi transmitida pela minha mãe. Durante a nossa infância tivemos sempre uma população semiflutuante de gatos em casa. Sempre adorei a personalidade dos gatos e era uma coisa muito próxima de mim.
A Sara foi criada numa quinta no Alentejo e também sempre teve gatos, uns da rua e outros de casa. Quando nos juntamos, contamos muitas peripécias que já vivemos com os nossos gatos. Quando a editora nos propôs este desafio – fazer qualquer coisa com gatos – não resistimos e lembramo-nos que seria engraçado fazer uma recolha de histórias que fossem semelhantes às nossas, de Norte a Sul do país.
Porque os gatos surpreendem, não é?
A mim surpreenderam-me muito. Eu acreditava que já sabia muito muito sobre gatos e fiquei extraordinariamente surpreendida, não pelo comportamento do gato em si, mas pelo vínculo extraordinário que as pessoas estabelecem com os gatos.
Pensávamos que íamos encontrar muitas histórias de resgate de gatos de rua e que a perspectiva do salvador seria sempre o humano a salvar o gato, mas aquilo que mais me surpreendeu é que muitas vezes é o gato a salvar o humano.
Daí a pergunta no livro: "Quem cuida de quem?"
É verdade. E “quem habita a casa de quem”. Abriu-se aqui uma comporta de histórias, muitas delas já passadas há 20, 30, mesmo 40 anos. As pessoas, quando contam as histórias da ligação afectiva que estabeleceram com o gato, ainda hoje se comovem e choram, porque o gato foi muito importante nalgum período mais doloroso na vida das pessoas.
No livro há histórias de divórcio, de mortes.
Sim, sim. A solidão. Vivemos numa sociedade com cada vez mais pessoas a viver sozinhas, e a viver literalmente sozinhas por opção, mas muitas a viver sozinhas e a estarem realmente sozinhas na vida.
Normalmente tem-se os cães como maiores comunicadores
São mais histriónicos.
Daí que o gato surpreenda, sobretudo para quem nunca teve um gato.
Sim, é verdade. Eu fiquei muito surpreendida porque estive à frente de um senhor com cerca de 70 anos que chorou “baba e ranho” a relembrar a morte de uma gata que teve no final dos anos 70 – uma gata chamada Lua. Ela desapareceu e voltou a casa, uns dias depois, com a parte de baixo esmagada. A gata tinha sido atropelada e estava há dias a tentar chegar a casa. Morreu nos braços dele e da mulher. O homem que eu tinha à minha frente e que me contou esta história era um homem duro, um trabalhador operário, que tem cães e que é caçador. É impressionante.
E esta história passou-se há tanto tempo, é mais antiga do que eu, e ainda hoje ele chorava “baba e ranho” a lembrar-se da Lua. Lembrava a meiguice da gata, a companhia que fez à família, mas lembrava sobretudo o facto de a gata ter desaparecido e só ter morrido quando encontrou os braços do dono. É uma conexão extraordinária e é capaz de reter a pessoa aparentemente mais fria.
Não estamos à espera que um homem forte tenha com um gato uma relação dessas.
Sim, e essa gata tem outra história engraçada, porque quando desapareceu, de repente, toda a gente ali na terra andava à procura da gata e os colegas desse senhor, que eram todos “homens de barba rija”, todos operários da pesada, andavam todos preocupados e todos derretidos à procura da gata, porque aquilo lhes tocava o coração.
Depois há a outra parte, como o caso do Simão e da família que o acolheu.
O Simão foi acolhido pela Marília, que é uma senhora superespecial, que adora animais e que trata muito bem de gatos, cães e tudo o que lhe vem parar à porta. Não recolhe só para ficar com os animais e ter muitos animais em casa; ela sabe tratar verdadeiramente dos animais e preocupa-se muito em que tenham cuidados veterinários adequados.
O caso do Simão é um dos mais chocantes pela maldade do acto em si, porque o gato tinha uma espécie de uma cola no pêlo. Mas depois é todo o trabalho de paciência que a Marília teve a cuidar do Simão. Tratava dele como se fosse um recém-nascido: ela punha umas luvas especiais para não lhe tocar na pele ferida, arranjou-lhe um peluchinho para ele se ligar a um cheirinho em particular e ter ali um conforto, pegava-lhe ao colo com a maior suavidade, falava com ele... Nunca desistiu do animal, apesar de as pessoas olharem para ele e poderem achar que era um animal condenado.
Há diferença entre pessoas que só albergam gatos e as que cuidam realmente deles?
Eu acredito que sim e há muitas histórias com que nos deparámos que resolvemos não colocar no livro. Há muitas pessoas que têm compulsão quase para acumular gatos em casa. Pensam que estão a fazer bem, que estão a resgatar gatos da rua – o que é um acto extremamente nobre e pode salvar a vida de um animal – mas depois torna-se uma compulsão e as pessoas não lhes dão os cuidados veterinários adequados.
Cheguei a ir a casa de pessoas que tinham 30 animais numa sala. Os gatos são extremamente individualistas e ciosos do seu espaço. Já ter mais de dois ou três gatos em casa é questionável.
O que é que os gatos têm para nos ensinar?
Muita coisa. São extremamente afectuosos, mas é preciso saber conquistá-los. Acho que nos podem ensinar, por isso, lições valiosas sobre o respeito pelo próximo. O respeito pelo tempo, pelo "timing" dos outros, que o amor e o afecto não se podem forçar, são coisas que se conquistam. Às vezes, está uma sala cheia de gente e o gato vai para procurar o colo daquela pessoa que não lhe liga nenhuma. Os gatos detestam ser perseguidos, detestam que os tentem obrigar a fazer alguma coisa.
Os gatos também são relacionados com o oculto. Porquê?
Sempre foram, para o bem e para o mal. Em centenas de anos, passaram de seres divinos (na Roma Antiga, no Egipto, na Pérsia) para serem diabolizados, associados ao demónio, durante a era medieval. Ao longo da História, houve muitos picos: o gato ora foi divinizado, ora foi diabolizado.
É um animal misterioso.
É um animal muito misterioso, que se guarda muito em si próprio, que não pode ser forçado a fazer nada – ao contrário de um cão, que é possível ensinar alguns truques e forçá-lo a alguns comportamentos. É muito difícil fazer isto com um gato e, portanto, ele parece ter uma personalidade quase humana.
Os gatos são também muito diferentes entre si, o que faz com que muitas vezes as pessoas lhes atribuam quase uma inteligência superior – e isso pode ser, numa cultura mais atrasada, extremamente assustador.
Porque é que os vídeos com gatos têm tantas visualizações e "likes"?
Porque eles são tão tontos... Eles têm um manancial de parvoíce dentro deles... Já viu o vídeo do pepino atrás do gato? Ele é predador, mas também é predado e confunde o pepino com um predador. Assusta-se e dá ali um salto... É que toda a fisicalidade do gato é muito cómica.
Vimos um cão a ter um acidente doméstico, ficamos genuinamente preocupados, mas o gato é quase o palhaço do circo; o gato é físico. Ele dá uma cambalhota engraçadíssima e depois mais um pino e aterra nas quatro patas e vai à vida dele, a sacudir-se.
[Os gatos] Parecem ter uma inteligência superior, com aquele ar esfíngico, de que estão constantemente a meditar, mas, por outro lado, têm este lado tão cómico e físico.
São também psicólogos, a julgar pelas histórias que contam no livro.
Falei com várias pessoas que viviam sozinhas e que estavam até em situações de depressão e de uma enorme solidão. O facto de terem um gato em casa fez com que tivessem, desde logo, alguém com quem falar.
O gato actua um pouco como um terapeuta, quando o que precisamos é de alguém que nos ouça e não propriamente alguém que nos faça mudar de ideias.
Por outro lado, está provado que só tocar num gato baixa os níveis da hormona do stress e nos torna mais relaxados. Não é por acaso que em vários países os gatos já são utilizados em hospitais e mesmo nos cuidados paliativos.
Não querem tirar a popularidade ao cão, querem dar ao gato o seu devido valor?
Sim, de todo. Acho é que já há muitos livros com histórias inspiradoras de cães, mas não conhecia em Portugal nenhum livro com histórias inspiradoras de gatos. Quando comecei a fazer o livro, eu a Sara até ficámos um bocadinho aflitas. Todos nós temos aquela ideia de que o cão salva uma pessoa de um edifício em chamas, não é? Agora, um gato? O que é que um gato pode fazer? Mas realmente cheguei à conclusão de que um gato pode mesmo salvar uma pessoa que esteja sozinha, deprimida, que não tenha vontade de viver e que chega a casa e encontra no animal conforto, paz, afecto.