24 fev, 2023 - 11:26 • Maria João Costa
É ainda difícil ao fotógrafo argentino Daniel Mordzinski falar de “Lucho”. Era assim que tratava o seu amigo de longa data, o escritor chileno Luís Sepúlveda. Por causa do lançamento do livro “Mundo Sepúlveda” (ed. Porto Editora) que está a lançar e onde junta as suas fotografias a textos inéditos do autor chileno que morreu de Covid-19, em 2021, o conhecido fotografo dos escritores regressa às memórias de uma amizade que foi uma “irmandade”.
Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, Daniel Mordzinski revela que “Mundo Sepúlveda, são muitos mundos”. A falar de forma pausada, o argentino explica que nas páginas do livro estão os mundos partilhados “ao longo destes 30 anos de irmandade”. Recorrendo às palavras de Albert Camus, Mordzinski lembra que “há encontros que marcam uma vida” e conclui que “sem dúvida” que o seu encontro com o Luís Sepúlveda marcou a sua vida e a da sua família.
Nas páginas deste livro estão retratos que Daniel Mordzinski tirou a Sepúlveda em paragens bem distantes como Moscovo ou a Patagónica. Pelo meio estão textos que o autor chileno escreveu, alguns com um registo bem pessoal e que até aqui não tinham sido divulgados.
Um encontro que começou mal
A amizade que uniu Sepúlveda e Mordzinski ao longo de 30 anos não começou da melhor maneira. Quem o recorda é o fotografo nesta entrevista ao Ensaio Geral da Renascença. Estávamos em 1992, quando num dos primeiros festivais, na cidade de Saint Malo o fotografo foi ao encontro do escritor no final de uma sessão.
“Lembro-me e, até hoje, riu-me desse primeiro encontro” diz Daniel que conta: “Comprei um exemplar do livro ‘O Velho que Lia Romances de Amor”, fiquei na fila para pedir um autografo e quando chegou a minha vez, apresentei-me, dei-lhe o meu nome, disse-lhe que era fotografo, e que o queria retratar. Olhou para mim, fixamente nos olhos e disse-me ‘Não, obrigada!’”.
Incrédulo, Mordzinski que lembra que “já fotografava há 15, 20 anos escritores, nunca tinha tido ninguém a recursar-se”. Por isso resolveu insistir no pedido, mas antes, conta, teve “vontade de pedir o reembolso do livro e de apagar a dedicatória”.
Depois de voltar a pedir a Sepúlveda para o fotografar, o autor chileno acabou por consentir. “O Luís aceitou, fiz-lhe umas fotos rápidas, porque vi que estava incomodado. Não era um bom momento. Eu entendi-o.”, recorda Mordzinski.
“Eu, como colecionador de borboletas, queria ter essa borboleta chilena, alemã na minha coleção. Disse-lhe que iria mandar cópias das fotografias e ele deu-me a sua morada, mas disse: ‘os fotógrafos sempre prometem e nunca cumprem’. Cheguei a minha casa em Paris, revelei essas fotografias analógicas. Fiz um envelope com a minha melhor letra e mandei para a sua casa na Alemanha. Num mês, mês e meio, chegou um envelope com uns selos alemães bonitos de coleção e era a resposta do Luís Sepúlveda”, lembra o fotografo.
Na carta vinha escrito: “Querido Daniel, as tuas fotografias não são fotografias, são radiografias, porque nelas vê-se o terrível momento que estava a viver. Agora sinto-me melhor, convido-te a fazer novas fotos”, conta Daniel Mordzinski.
Segundo a sua opinião, “foi a forma elegante de pedir para não usar aquelas primeiras fotografias”. E assim, aconteceu, até hoje, essas fotografias permanecem incógnitas e Mordzinski viajou “até à Selva Negra, até à sua casa na Alemanha e assim começou a amizade” que só a morte por Covid-19 de Sepúlveda, interrompeu.
O Espaço Memória Sepúlveda na Póvoa de Varzim
“Talvez os leitores deste livro nos possam dizer se a alma Sepulvidiana está presente neste Mundo Sepúlveda que põe em diálogo muitas das histórias que o Luís me contou, histórias que ele escreveu e que não estavam publicadas, com uma seleção de fotografias que tirei ao longo destes 30 anos”, conta Daniel Mordsinski que terá agora a responsabilidade de ser o curador do espaço Luís Sepúlveda que vai nascer na Póvoa de Varzim.
A cidade organizadora das Correntes d’Escritas irá acolher a biblioteca pessoal do escritor. O protocolo foi assinado entre a viúva do autor e a autarquia na abertura das Correntes. Além da biblioteca, na Póvoa será criado um espaço expositivo e será recriado o escritório de trabalho de Lucho.
“Estou muito feliz que o Lucho regresse à sua casa da Póvoa de Varzim. É um regresso à nossa casa de Portugal, e é também, uma ponte, uma nave que vai permitir conservar espaços de memória. Esses ‘Mundos Sepúlveda’ também vão estar presente nesse legado, porque não é só a sua biblioteca pessoal, os milhares de livros, muitos deles autógrafos, é também tentar que seja um espaço para que volte a ser lido o Luís Sepúlveda, ou para descobrir o Lucho Sepúlveda escritor”, explica o fotografo.
O espaço Memória Luís Sepúlveda deverá ser criado no próximo ano na Póvoa de Varzim. Até lá o autor chileno deixa-nos uma biblioteca imensa para descobrir. A começar por este Mundo Sepúlveda agora editado pela Porto Editora.