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É preciso um Governo que olhe para o cinema. “A Somália produz mais cinema do que nós”, diz realizador José Carlos Oliveira

12 jan, 2024 - 14:11 • Maria João Costa

O realizador não consegue financiamento para realizar o “filme da sua vida” sobre D. Afonso Henriques. José Carlos Oliveir, que tem em mãos a adaptação ao cinema do livro “Estuário”, de Lídia Jorge, faz um diagnóstico do problema do financiamento do cinema.

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José Carlos Oliveira tem um projeto de vida que é realizar um filme sobre o fundador de Portugal, D. Afonso Henriques. Ainda não conseguiu ter financiamento do Instituto do Cinema e Audiovisual. Mas não desiste.

Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, o cineasta lamenta o atual estado do subfinanciamento do cinema, diz que é “preciso um Governo que olhe para o setor”, até porque aponta: “A Somália produz mais cinema do que nós.”

José Carlos Oliveira, que dirige a produtora Marginal Filmes, está a coordenar um projeto de filmes para televisão. Antologia 27 tem adaptado contos de autores portugueses. O último será filmado por si e leva à televisão um conto de José Saramago.

Nesta entrevista, o cineasta reflete sobre a política de cinema em Portugal. Diz que é preciso olhar para o exemplo de outros países. José Carlos Oliveira considera que mudou a forma de ver cinema. “O cheiro das pipocas, as discussões que há no cinema” afastam os espetadores, lamenta o realizador que aponta a experiência de ver cinema em sala como “insubstituível”.

Comecemos por olhar o projeto que tem em curso, a realização de um filme que adapta uma obra de Lídia Jorge. Que obra é essa e em que ponto está o projeto

É como todas as obras da Lídia Jorge, é de uma enorme inspiração e talento.

É naquele formato de narrativa, arrumada, não expectável. É um bom edifício no final, particularmente muito inspirado. Trocámos impressões os dois sobre isso e ela sugeriu-me que fosse “O Estuário”.

Tem muito a ver connosco e com a sociedade hoje em dia, e aquilo por que passam as pessoas. Não só tem a integração social, como uma chamada aos problemas que temos e particularmente também a maneira como se conseguem resolver, mesmo que de forma pouco expectável.

Ou seja, é um filme rodado em Lisboa, como o romance de Lídia Jorge e que fala do confronto de gerações?

É isso. Tem a particularidade de ter as personagens despidas de pretensiosismo. Chegamos mesmo, ao acompanhar uma personagem, até determinada altura, parecer-nos que ela é pueril. Mas afinal, não é, portanto, eu acho muito interessante. Tenho grande fé neste livro da Lídia Jorge. É a primeira vez que eu a desafio para nos juntarmos. Estou a desenvolver com a argumentista Eduarda Laia o projeto, e também com a Lídia Jorge. É o compromisso que ela imediatamente aplaudiu, aceitando de que ela esteja ao longo do desenvolvimento do projeto. Não quero trabalhar contra o autor, não quero colar-me ao que o autor escreveu, mas quero que o autor se sinta muito confortável e entusiasmado com o trabalho final.

Estará a concluir outro projeto, o da Antologia 27 para a RTP, com a adaptação de contos de escritores portugueses. Que autores foram adaptados?

Desde Camilo Castelo Branco, a Fernando Pessoa, passando por Rui Zink ou José Saramago. Aliás, o Saramago será o último filme a ser feito. É simbólico, é realizado por mim, é o “Coisas” do Saramago. É um projeto muito difícil, está bem-adaptado pelo Pedro Marta Santos e por mim e vamos fazer esse filme para encerrar este conjunto de 27 filmes que estamos a fazer neste novo formato.

É cinema para televisão, não é uma série de cinema para televisão. A ideia é conseguir criar numa narrativa arrumada e emotiva que provoque e que emocione as pessoas e tentar criar novos públicos através de uma leitura, num primeiro plano muito legível, com os elementos muito legíveis, e depois com as densidades todas que, quem quiser ter essa paciência vai encontrá-las lá, e permitem leituras de crescimento para todos nós.

Qual a exigência do cinema para televisão? Vivemos no tempo dos canais de streaming. Que diferenças há? É uma nova exigência à televisão? Vai ao encontro do que é a produção audiovisual do século XXI?

Eu não gosto de pragmatismo, gosto de realismo, mantendo o nosso horizonte na utopia. Sabemos que não chegamos lá, mas tendo em conta as peças que estão à nossa frente, temos de continuar a caminhar para aí.

Foi por isso que nós desenvolvemos este projeto, reconhecendo que, particularmente com a pandemia, as pessoas adquiriram os hábitos de ter sistemas de imagem e de som bons em casa. Se a isso juntarmos o cheiro das pipocas, as discussões que há no cinema, é evidente que tudo isso afasta os espectadores das salas de cinema. Infelizmente! Porque o fenómeno é insubstituível.

Mas temos de ser realistas e perceber que todos estes hábitos de ver coisas, nem só filmes, infelizmente, coisas muito más, às vezes, passaram para, desde as plataformas, às televisões generalistas.

Reconhecendo isso, nós achamos, e o José Fragoso apoiou. Ele é um visionário, é a pessoa certa no lugar certo. Apoiou desde o princípio este projeto que é invulgar e que, numa primeira exibição de 11 filmes que estavam prontos na altura, gerou 2 milhões e 500 mil espectadores.

Por isso terem alargado a 27 filmes?

Sim, foi alargado aos 27 por isso. Sabemos o que estamos a fazer e temos trabalhado com imensos realizadores, técnicos, argumentistas, pessoas que existem em Portugal e sabem o que estão a fazer.

Mas temos de ter condições e particularmente nesta área narrativa que provoca emoções nas pessoas, utilizando muitas vezes a hipérbole, que é uma ferramenta dramática a que se recorre muito para que se perceba a importância de determinadas coisas que, de outra forma, sem recorrer à hipérbole, passariam com menos importantes para o espectador menos atento.

Este é um projeto muito grande. Nunca se fez. São muitos filmes seguidos e estamos a consegui-lo. Faltam quatro filmes! Se conseguimos chegar até aqui, provavelmente conseguiremos chegar até ao fim, sendo que eu, intencionalmente deixei o meu filme para o fim. Portanto, temos mesmo de acabar.

O seu grande projeto de vida é a rodagem do filme sobre D. Afonso Henriques. Continua a ser uma odisseia?

A odisseia está nessa tentativa, exatamente. Não é no filme em si. Claro que isto é uma brincadeira! O filme é uma odisseia. A história está escrita. Houve alguém que se sentou a ler o guião, leu 10 páginas, teve de ir fazer qualquer coisa ali à cozinha, um café ou uma coisa qualquer, e sentou-se a ler. Telefonou-me depois, a seguir, essa pessoa que muito respeito dizendo que, desde os diálogos, à encenação e à interligação daqueles elementos para uma narrativa, ele não conseguiu mais parar, e o guião tem 140 páginas.

Podemos saber quem foi?

Foi o António Pedro Vasconcelos. Isso para mim, foi a confirmação de que aquilo estava bem construído e, portanto, a odisseia está na tentativa de fazer.

Eu até hoje, não lutando, porque a minha índole é essa, eu gosto de lutar pelas coisas em que acredito. Não consigo deixar de acreditar. Por vezes até chamo a mim próprio a atenção para o eventual exagero em prosseguir uma luta, mas eu acho que é o meu projeto de vida.

Porquê?

Acho que somos uma nação, das poucas, que sabe quem foi o fundador. Foi o D. Afonso Henriques. Temos vários elementos, desde o [José] Mattoso, que é mais negativo sobre o D. Afonso Henriques, a outros, temos vários elementos sobre o fundador.

Nós não estaríamos aqui como estamos, se não fosse o D. Afonso Henriques, e a maneira como construí a narrativa acho que é uma maneira inovadora e surpreendente.

Tem as densidades necessárias para que possamos raciocinar sobre o assunto. Mas seguir aquela linha toda da evolução de um miúdo por quem ninguém dava nada, e que depois se transforma no D. Afonso Henriques, mesmo que, segundo alguns historiadores, exagerasse no álcool!

O que lhe tem faltado para este projeto? Financiamento?

É! O projeto não tem passado, até hoje no Instituto Português de Cinema. Os jurados escrevem sempre que o projeto é excelente, inclusivamente a pesquisa histórica, o suporte todo daquilo, mas dizem que, por exemplo, o orçamento não corresponde à dimensão da personagem.

Isto não se pode dizer, porque a dimensão da personagem, se quisermos ter um orçamento correspondente, o orçamento americano, se calhar, não chega! É o fundador de um país, portanto, foi um lapso, com certeza.

Mas não vai desistir?

Não, não vou desistir. Posso perder, mas não vou desistir.

Porque é que considera importante trazer para o cinema figuras como o D. Afonso Henriques, ou seja, da História, desta portugalidade?

Imaginemos o que é a memória sem estar povoada pelos elementos que explicam de onde é que viemos, como é que nos tornámos em quem somos? Essa memória vai ser preenchida por aqueles estampidos que nos vão aparecendo, cada vez mais hoje em dia, e com imensa força, com máquinas de marketing brutais por detrás e nós vamos preencher a memória com coisas que não são minimamente portuguesas e, quando são portuguesas, são à flor da pele.

Eu acho importantíssimo, por isso, nós sabermos quem foi o fundador, mas depois também outras pessoas. Por exemplo, o 25 de Abril, não é devidamente tratado. Agora vamos entrar na comemoração do Luís Vaz de Camões. Não está nada preparado!

São os 500 anos do nascimento do poeta de Os Lusíadas

São 500 anos do Shakespeare português. Temos dois, um é o Gil Vicente, o outro é o Luís Vaz de Camões, com ligeira disparidade nas épocas, mas de qualquer maneira repare nós portugueses estamos neste momento ansiosos por estar ao nível das Nações que se consideram mais avançadas, e esta ansiedade compreensível, em lugar de nos aconselhar a ganharmos cultura sobre a nossa História e sobre o que se passa hoje em dia, ninguém olha, nenhum dos governos, poderes políticos olhou devidamente e, portanto, estamos aqui a perder a nossa capacidade de evoluirmos como Nação.

É uma questão de identidade?

Absolutamente. Memória e identidade, como os alemães, como os holandeses. São países como França, que já teve o seu auge, nos anos 60 e tal. Portanto, nós somos um produto, na verdade, da influência cultural francesa, nós os mais antigos. Os mais novos já resultam de uma influência que não se sabe qual. Repare, nós aprendemos o que não é português, absorvemos o que não é português, mas acordamos todos os dias em Portugal e, portanto, somos desenraizados no nosso próprio país. É para aí que nós queremos caminhar?

Trabalha muitas vezes a partir de textos de escritores portugueses como Mário de Carvalho, João Aguiar, ou de escritores de língua portuguesa, como Mia Couto. É isso que traz essa marca da identidade que pensa ser necessária ao cinema que se faz em Portugal?

Absolutamente. Aliás, tanto o Mia Couto como o José Eduardo Agualusa, por quem eu tenho uma enorme admiração e apreço, são resultados da cultura portuguesa integrada noutra realidade e reagindo a ela própria, criando uma nova linha, mas uma linha que está casada com a linha original portuguesa.

Como olha hoje para o financiamento do cinema em particular e da cultura em geral?

Eu tinha uma grande fé no ministro da cultura Pedro Adão e Silva, porque é uma pessoa preparada, culta, inteligente. Infelizmente, foi interrompido o percurso e, portanto, neste momento continuamos, no cinema, como estávamos.

O orçamento de Estado, acrescentou cinco milhões, três dos quais, são para os custos administrativos do Instituto do Cinema e Audiovisual. Restam dois milhões, mais coisa, menos coisa, para o cinema.

O que permite aos cineastas, durante as produções, comprar whisky barato, não chega para mais nada e não é para todos! Aqui em Espanha, o orçamento do Estado, além de todas as taxas de financiamento que nós também temos ao cinema, em Espanha põe 100 milhões.

Em países como Espanha e França, temos de ver o que eles estão a fazer, e o que é que o orçamento de Estado faz, e qual o quadro legal, e indexarmos ao nosso PIB. Evidentemente, isso representaria praticamente 25 milhões de euros hoje em dia, acrescidos às taxas que temos e então, sim.

Quando eu fiz a minha primeira longa em 1997 a Inês de Portugal, tive mais dinheiro do que hoje e financiado pelo Instituto Português do Cinema, na altura.

Aumentaram os ordenados. As equipas têm ordenados superiores, porque têm filhos, têm casa e são altamente qualificadas. Portanto, estiveram a investir na sua aprendizagem e para pagar tudo isso, não se pode pagar, porque onde é que se vai buscar o dinheiro? Ao dinheiro da produção? O filme baixa o valor de produção?

Como é que nós podemos competir com o estrangeiro? E, portanto, é preciso um Governo que olhe para isto. A Somália produz mais cinema do que nós! Passa-se qualquer coisa, não?!

Tem outro projeto à espera de financiamento?

Está uma candidatura na qual eu deposito grande fé. Está contratado com a RTP, e está a concurso no Instituto do Cinema. É um projeto que se chama “Não te atrevas a abrir a porta”, é um projeto de suspense dirigido ao target família, começando pela gente mais jovem dos núcleos familiares, e depois alargando aos avós e em segundo lugar, é a visão que eu tenho da narrativa, alargando depois aos pais.

Julgo que conseguiremos, porque tem um elemento de suspense, tem um elemento de criação de expectativas, e depois tem várias resoluções muito interessantes.

É um projeto que tem a ver com a sociedade de hoje em dia, gente retirada da urbe e que vai para o interior. É uma questão extremamente importante por causa da coesão. É necessário haver igualdade. Tenho grande fé neste projeto que está a concurso no Instituto do Cinema e Audiovisual.

Comentários
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  • ze
    15 jan, 2024 aldeia 15:51
    O governo não deve olhar para o cinema, nem para outras áreas, se estiverem sempre á espera que o governo dê esmolas , nunca se faz nada, o que é preciso é que o governo legisle bem e que governe bem o dinheiro dos contribuintes, que baixe a carga fiscal, que lute contra a corrupção e os compadrios instalados e que haja mais liberdade para se fazer o que se deve fazer, seja o cinema, seja o teatro, seja qualquer arte.

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