12 jan, 2024 - 15:42 • Maria João Costa
Vinte anos depois de ter lançado “O Nosso Reino”, e 10 romances depois, Valter Hugo Mãe assume que sentiu necessidade de voltar a incluir Deus na sua escrita. Sobre “Deus na Escuridão” (ed. Porto Editora), que chega na próxima semana às livrarias, o autor confessa ser o seu livro mais espiritual.
Em entrevista ao Ensaio Geral, da Renascença, Valter Hugo Mãe explica que este novo livro, passado na ilha da Madeira encerra uma tetralogia de livros dedicados a ilhas, irmãos e ausências. No centro da ação está a vida de dois irmãos, Pouquinho e Felicíssimo, mas o livro que Valter Hugo Mãe dedica à sua mãe é sobretudo um hino ao amor incondicional das mães, “apenas comparável ao tamanho do amor de Deus”, diz o autor.
Considerando que o espaço da ilha “redobra as pessoas”, Valter Hugo Mãe inspirou-se em histórias reais da Madeira. “A angústia que podemos associar à vida de um ilhéu, tem muito que ver com esta bravura de precisar de resistir num lugar onde, ao mesmo tempo tudo é pouco, mas o pouco é tão intenso que se pode tornar insuportável”, refere.
“Deus na Escuridão” conta a história de dois irmãos madeirenses. Quem são o Pouquinho e o Felicíssimo. Como nasceu esta história na sua cabeça?
Eu queria muito montar uma história passada no Campanário, na ilha da Madeira e que me é inspirada um pouco pela energia da senhora Luísa Reis Abreu, a Luisinha do Guerra que entra no livro.
Uma das pessoas a quem dedica o livro
Dedico o livro. É uma senhora crente, católica, com muita fé e que eu acho que, na experiência da minha vida inteira, é talvez a pessoa que eu tenha visto com uma fé mais limpa, de uma lisura na maneira como acredita e como espera uma resposta da transcendência e do divino que me comove muito. Quisera eu que todos nós pudéssemos atingir um estado, diria viver numa graça como aquela que ela vive. Estes dois irmãos são ficção, nunca existiram, são inventados.
O Felicíssimo e o Pouquinho, um, 10 anos mais velho do que o outro, existem para testar um pouco estas forças do que é acreditar. É como se fossem, um e outro, testes ao próprio silêncio de Deus.
É como se quisessem forçar Deus a uma pronúncia, como se quisessem forçar Deus a um milagre, ou como se quisessem forçar o milagre a acontecer.
Não deixa de ser curioso o facto de serem crianças. Esse lugar da infância tem essa inocência acoplada? É a condição que ajuda a atingir esse lugar da fé?
A minha experiência pessoal traz-me a convicção de que me aconteceu um milagre quando eu era criança e, por isso, viverei sempre com isso. Tenho um pouco, talvez por isso mesmo, esta ideia de que as crianças estão mais expostas a um possível absoluto, ou qualquer coisa que extravasa o puramente racional, ou a racionalidade de que somos capazes.
Confio muito mais…enfim, confio, é muito forte, mas estou mais predisposto a confiar no que possa ser visto por uma criança, do que aquilo que talvez um adulto me venha tentar dizer ou convencer.
Voltou a colocar a ilha como cenário de um livro. O que é que tem de tão interessante em termos literários para si esse lugar confinado?
Este livro encerra uma tetralogia sobre ilhas, de tramas passadas em ilhas e até, de alguma forma, me frustra, porque tenho a sensação de que poderia passar o resto da vida a escrever sobre ilhas.
Há mais ilhas?
Há mais ilhas.
O cenário da ilha, de facto, apela-me. É uma espécie de espaço que redobra as pessoas.
Redobra as pessoas no sentido de as tornar mais isoladas, mas ao mesmo tempo, também numa espécie de “super” vizinhança. O ilhéu está tão à distância, como de repente fica encurralado com o seu próprio vizinho.
É tudo mais intenso?
É. As coisas valem um pouco em dobro, e acontecem numa relação à qual não se consegue fugir. Não há como diluir as relações no espaço de uma ilha, como fazemos eventualmente no continente.
Isso é muito interessante, porque gera um indivíduo que ao mesmo tempo sofre da lonjura, de distância e iminentemente de solidão. Mas não é uma solidão propriamente efetiva, é uma solidão onde eventualmente a companhia é uma demasia.
A companhia que existe tem uma espécie de categoria do exagero, do foro do extremo e, por isso, a mim fascinam-me estas pessoas.
A angústia que podemos associar à vida de um ilhéu tem muito que ver com esta bravura de precisar de resistir num lugar onde, ao mesmo tempo tudo é pouco, mas o pouco que existe é tão intenso que se pode tornar insuportável.
E a Madeira tem esses ingredientes?
Sim, sobretudo fora do cosmopolitismo do Funchal. No Funchal há uma sensação de capital, a passagem dos turistas, daquela população flutuante, inunda e transforma a cidade constantemente.
Contudo, quando chegamos a lugares como, por exemplo o Campanário, na Ribeira Brava, as coisas são diferentes e distintas
A vida no Campanário é mais genuína?
Mais conservada. Talvez, mais genuínas com radicais que se vão perdendo muito mais lentamente. As mesclas, as misturas, as contaminações são bastante mais lentas e, por isso, as pessoas, maturam os seus modos de uma forma mais profunda.
“Deus na escuridão” é um livro que dedica à sua mãe, Antónia Rodrigues Alves. Há aqui um hino a essa condição de ser mãe? Porquê?
Na verdade, o livro, sendo acerca de dois irmãos, o que ele quer é confiscar o amor das mães. Por isso, o Felicíssimo, o irmão mais velho, a maneira como ele se reforça, como ele se fortalece para cuidar do seu irmão mais novo parece levá-lo a entender que o seu amor não pode ser ao tamanho de um amor de um irmão. Precisa de ser ao tamanho de um amor de uma mãe.
O tamanho do amor de uma mãe poderá ser apenas comparável ao tamanho do amor de Deus.
Por isso o título, “Deus na Escuridão”, mas poderia ser as “Mães na Escuridão” e, em última análise, poderia ser “Todos nós na Escuridão”, nós, os que formos capazes de amar alguém! Tem a ver com esta ideia de que a amar é sempre sem garantia, é sempre um pouco sem se saber em que direção está a pessoa amada e talvez todos devêssemos cobiçar a capacidade que as mães têm nesse afeto incondicional.
E que lugar ocupa Deus neste livro?
Nos meus livros, a espiritualidade está sempre presente, mesmo que possa ser uma espiritualidade não religiosa, digamos assim, a espiritualidade faz sempre parte, porque é da minha natureza. Mas este livro é o livro onde a espiritualidade se liga de uma forma mais efetiva.
É ela que cose o livro?
É ela que cose o livro. É essa presença, ou essa omnipresença, a possibilidade de uma divindade, de um Deus que justifica praticamente todos os gestos. É essa, em última análise, a grande esperança. Que Deus esteja a organizar as coisas, Deus esteja a acautelar as coisas, porque à Humanidade sobra sobretudo a coragem, mas nem sempre a inteligência.
Dizendo isto, lembro que “O Nosso Reino” que é curiosamente o meu primeiro romance, era já uma espécie de tentativa de obrigar Deus a falar. Curiosamente, “O Nosso Reino” saiu em 2004, por isso estamos em 2024.
20 anos depois, e 10 romances depois, eu regresso a essa necessidade de incluir Deus na minha vida.
Ele esteve sempre incluído, mas de saber que papel Ele pode ter na minha vida, agora, aos 52 anos, já menos ingénuo, talvez. Mas sempre necessitado de um certo encantamento, e sempre convicto de que sem esse encantamento as coisas não fariam sentido nenhum.