15 jan, 2024 - 11:00 • Redação
“Essa música é de quem?”. Muito provavelmente, a resposta que se segue é o nome da pessoa que a canta. É verdade. Os músicos cantam, tocam e dão música. E a cara. Mas a quem se dá mais créditos?
Seja mais ou menos a onda do ouvinte, talvez seja preciso parar para pensar. Pensar em quem magicou a canção e esteve enfiado no meio da papelada. São os compositores que passam horas a planear uma sinfonia ou uma soma de letras que um dia vai se encostar pertinho do ouvido com a voz de outro alguém.
“Quando o filho diz que vai viver da música, o pai olha e diz: “vai mazé trabalhar!”.” Jorge do Carmo, 58, faz desta arte o seu “ganha-pão” há mais de 30 anos. “O pessoal não leva a música a sério”, queixa-se à reportagem da Renascença. Mas não valeu a pena reprimir o sonho e nem tem planos de parar.
“É mesmo para além de uma centena de artistas que eu já trabalhei... Deixe-me ver o que eu tenho pr’aqui...”. Vai consultando, para cima e para baixo, as pastas que tem guardadas no computador, mas nem assim: não sabe a quantas anda.
Como músico profissional, Jorge compõe e produz com genica temas originais encomendados pelos próprios cantores ou pelas editoras. Sem nunca desviar o olhar da maquinaria do estúdio, escreve temas “bons para baile, bons para a gente dançar”.
A música popular ou a música ligeira, como gosta de chamar, enche a sua vida laboriosa. Todos os santos dias - menos ao domingo que é de descanso sagrado -, enamora-se nas melodias e nos trocadilhos. “Ao longo dos anos, dei por mim a fazer letras."
Há quem as escreva, mas há também quem as sinta e tente compreender ao milímetro. “A letra é uma provocação para a música acontecer”.
Do papel para o piano, Pedro Lima, 29, foi por outro caminho. E não, as palavras não são as protagonistas nas suas folhas, mas as notas (os dós, ré, mi, fá, sol, lá e si) que preenchem as partituras.
“Desde que nasci não me lembro bem da minha vida sem a música existir”. Mas não é por ter nascido numa casa com um irmão pianista, um pai guitarrista amador e uma mãe que, nas voltas, canta uma música ou outra que Pedro sabia ao certo o que iria ser.
Levada com aborrecimento na adolescência, a música clássica é hoje a menina dos olhos e ouvidos do compositor. A antipatia e “até aversão” de Pedro por este estilo só mudou aos 14 anos ao ouvir pela primeira vez a 2.ª Sinfonia de Beethoven.
“Lembro-me daquilo me fascinar pela questão melódica e harmónica e pensei 'Uau, isto é incrível', mas provavelmente nesse mesmo dia fui para casa ouvir hip-hop, house ou Amy Winehouse”, recorda.
Só aí percebeu que existia a “ciência da composição”. E percebeu que, afinal, não havia grandes chances de desafinar na carreira que estava prestes a começar, no ensino secundário, em composição, em Braga, onde se tornou também mestre em clarinete. “Apercebi-me de que podia compor com relativa facilidade e, mais do que isso, gostava muito de o fazer."
Já Joana Espadinha, 40, cresceu a cantar modas alentejanas com a família e a escrever poemas na escola primária. “A minha mãe até diz que eu cantei antes de falar”, revela.
“Imaginava de uma forma assim meio romântica ter uma profissão normal e depois ser descoberta”. Começou por caminhos apertados de direito e jornalismo, mas não foi difícil desvendar que o amor pela música era superior e que, ao tornar-se graúda, iria ser “muito apaixonada” por aquilo que faz há mais de dez anos.
Cantautora, professora de voz, mas sobretudo compositora, licenciou-se em jazz em Amesterdão, onde começou a compor as primeiras baladas. “Acabei por ir mais além”." Hoje, as tabelas portuguesas têm o seu nome afixado nas letrinhas de muitos artistas portugueses pop, indie, jazz e fado, se bem que Joana nada liga a “rótulos”.
“Ser compositora é maravilhoso”, confessa. “É poder viver várias vidas, porque há coisas que eu gosto de escrever para mim, que são autobiográficas, e há outras histórias que são sempre minhas de alguma forma e que eu escrevo a pensar noutros intérpretes."
“Quando estamos a escrever para os outros, é sentir como se estivéssemos a vestir a pele de outra pessoa”, confirma Jorge. Dá razão, sem se esquecer que a vida complica-se. “Com dois filhos nos braços aos vinte e poucos anos”, escrever resume-se bem mais vezes do que gostaria a “uma forma de ganhar dinheiro e de viver”.
Noutros tempos, os seus acordes de guitarrista esbarraram-no a um convite de uma editora. Lá, “meteu umas guitarras” e, no gira e volta, começou a compor músicas e fazer arranjos para “essa malta toda mais popular”.
“Só tenho de agradecer a Deus por me ter dado este talento." Mas não se deixa iludir. É preciso lucrar para entrar no mercado e na mira das editoras. Em especial, é preciso um lance de sorte. Joana criou o seu.
“Há quatro ou cinco anos, a Carminho não me conhecia e eu queria muito escrever uma canção de propósito para ela. Escrevi, enviei e ela gostou muito”. conta. “Mais tarde, começaram a chamar-me mais vezes”, acrescenta.
Com as canseiras da maternidade, tem de aproveitar “todos os bocadinhos para escrever, saltando de uma faixa para outra”. A cantarolar ou experimentar ritmos, lá vão chegando as ideias.
“Dei um salto muito grande” na indústria. Pudera. Até ao momento, “escrevi para o Luís Trigacheiro, Cláudia Pascoal, Mariza Liz, Elisa Rodrigues, Diana Castro...”. São os primeiros nomes que lhe vêm à cabeça. E todos a surpreendem. “Tenho muito orgulho em todos os artistas para quem escrevi”, diz.
Pedro Lima também criou a sua primeira oportunidade de trabalho ao concorrer e levar o prémio nacional da Banda Sinfónica Portuguesa. Mal sabia que se seguiam tantas outras oportunidades.
Com 21 anos, escreveu a primeira peça para a Jovem Orquestra Portuguesa que foi estreada na “sala mítica” Concert House, em Berlim. Não é uma sala qualquer. Por lá, “passa toda a gente importante na música clássica e a probabilidade de voltar não é assim muito alta – embora eu acredite que isso possa vir a acontecer”, confessa.
A mestria treina-se. Destapa, descobre e investiga sozinho as camadas de partituras “puramente instrumentais” de forma “microscópica”. “Tento racionalizar de onde vem o meu gosto e este fenómeno chamado subjetividade”. Mas também há momentos que é só “para curtir”.
Depende dos dias e Jorge do Carmo sabe bem disso. “Se estiver virado para aí, vejo o que me pediram e tento criar o casamento perfeito entre a letra e a música.” Por vezes, com uma consulta ao dicionário de rimas pelo meio. “Quando chego ao estúdio e não dormi assim lá muito bem, é que nem atrevo a compor”, confessa.
Há que ter bom olho e perceber bem o que fica bem na voz, imagem e mercado de cada um. “Trazem ideias parecidas ao que veem de lá de fora e a gente sabe que não funciona.”
“Ai, quero um reggaeton." “Ok, queres um reggaeton cantado em português? Então, vai soar a pimba. É melhor não ires por aí."
Quim Barreiros, Ana Malhoa, Maria Lisboa, Rui Bandeira e por aí vai. Muitos artistas gravam com este produtor há mais de vinte anos, o que significa que “se identificam de tal maneira comigo que não querem outra coisa”.
E se não gostarem assim tanto do que se escreveu? “Não entra num, entra noutro”, explica. “Recusam temas que, depois, são um grande sucesso e acabam por se arrepender.” E como não se escorrega e cai na repetição? “Não há hipótese. Eu sei que toda a gente, aqui ou ali, acaba por se repetir um pouco”, reconhece.
“Já tudo foi feito”, defende Joana. “Ninguém está livre de isso acontecer e a única coisa que podemos salvaguardar é a boa intenção, honestidade e assumir os erros."
“Compor é sempre um ato de generosidade e de partilha com o intérprete para quem escrevi, mas também para com o mundo." A música é, enfim, a pedra preciosa do compositor e o reconhecimento está muito ao lado do que se espera.
“Não vou dizer que às vezes não penso: 'Oh... não estão a dizer que fui eu que escrevi'”, lamenta Joana. Vai se aprendendo a controlar os egos quando a canção voa para a mão do intérprete. “Nós estamos a entregar um tesouro nosso e temos de deixar que o artista brilhe."
Não é bem esse o caso com Pedro Lima. “Ninguém está lá a bater palmas quando estou nove horas por dia a escrever uma peça. Mas era fixe que isso acontecesse”, diz.
Pedro pouco se interessa em ter uma “linhagem pura”. Prova disso é fazer, por vezes, música eletrónica - “que não é a que passa na rádio”, explica. “Quem é que vai querer escrever música para um rancho? Foi para isto que estudei? Ó, pá, foi”. Para Pedro, essas questões estão obsoletas. Preocupa-se mais com a dignidade do seu trabalho.
“A minha música não é um objeto de museu a acumular a pó”, ao contrário do que está a acontecer com a música clássica. Por este caminho, “vai-se irremediavelmente extinguir a ópera e os grandes clássicos, e daqui a algum tempo vamos falar dela como falamos de dinossauros”.
Independentemente do estilo, “é importante educar o público a valorizar o papel do compositor”. Pelo menos, é no que Joana acredita. Apesar de haver muitas cantautoras em Portugal, são raras as mulheres que se dedicam a escrever apenas para outros. “Claro que ainda há desequilíbrios, mas é uma questão de tempo”, confia.
“Portugal tem uma rede grande de escolas de música, mas poucas jovens acreditam que podem ser compositoras”, declara o presidente da Associação Portuguesa dos Compositores (APC). Esta é a convicção de Pedro Pinto Figueiredo, 57, que se presta a “defender a autoria e a liberdade criativa dos criadores”.
Nem sempre se faz tudo o que se gosta. Jorge tem a biblioteca cheia de Rolling Stones, Beatles e AC/DC. “Se fizesse só a música que eu gostava, a única coisa que fazia era rock & roll. Mais nada."
“É importante não cairmos na tentação de se criarem empresas muito grandes, porque limita a criatividade a interesses económicos”, apela o presidente da APC.
“Só posso dar graças a Deus”, nota Jorge do Carmo. “Não me arrependo das decisões que tomei, porque, se eu tenho tanto trabalho e sou bem-sucedido, voltaria a fazer o mesmo."