21 fev, 2024 - 21:59 • Maria João Costa
A notícia do prémio chegou de madrugada. Eram 4h00 da manhã no México quando Fernanda Melchor foi surpreendida com a atribuição do Prémio Literário Casino da Póvoa, concedido esta quarta-feira no âmbito do Festival Correntes d’Escritas da Póvoa de Varzim ao livro “Temporada de Furacões” (ed. Elsinore).
Numa ligação via internet a partir do México, a autora que acaba de ver publicado em Portugal "Paradise" (ed. Elsinore), o seu segundo livro, confessa-se “muito contente” com a noticia do prémio que “honestamente não estava à espera”.
“Temporada de Furacões” foi o livro que escreveu há 10 anos e que retrata o lado marginal do México, os cartéis de droga, a violência e o crime. Em resposta à Renascença, Fernanda Melchor lamenta que nada tenha mudado numa década.
Sobre este livro, que admite ter escrito “numa fase de crise” do seu país e mergulhada numa “crise pessoal”, a escritora considera “muito inquietante ver que as coisas não melhoraram, e até pioraram”.
“Continua a haver muitos crimes contra mulheres, muitos crimes relacionados com a luta contra as drogas, os carteis, a delinquência organizada, mas também crimes realizados pelo próprio Estado”, denuncia.
É por isso um “livro atual”, diz Melchor, em ano de eleições no México. A autora mostra-se desapontada por haver hoje no seu país um clima de banalização da violência. Diz mesmo ser “tenebroso” essa “indiferença das pessoas no México”.
"Se queremos mudar o mundo, a literatura não é uma boa forma para o fazer. O ativismo parece mais importante"
“Quando escrevi este livro, o que queria era romper esta indiferença, porque o problema das drogas e da violência tem muitos anos e acostumamo-nos. Eu escrevi este livro com essas palavras duras, com essa linguagem tão crua, com essa violência tão explicita, porque queria sacudir as consciências”.
A Renascença perguntou, por isso, a Fernanda Melchor qual a força que a literatura tem? Na resposta, a autora considerou que “a literatura tem essa força, mas não tem essa obrigação” de mudar consciências.
“Se queremos mudar o mundo, a literatura não é uma boa forma para o fazer. O ativismo parece mais importante, porque a literatura atua só de pessoa em pessoa. É muito lenta. A mudança social requer outro tipo de força, mas a literatura serve para expressar a verdade do que vemos.”
Em “Temporada de Furacões”, Melchor diz ter mostrado “a verdade do que via, as histórias que não surgiam nas notícias e nos jornais”. Considera uma das novas vozes da América Latina, a autora diz que irá usar o prémio para continuar a escrever.
Avessa a entrevistas, Fernanda Melchor quase nunca participa em eventos literários, diz que para si “o mais importante tem sido encontrar o silêncio”.
“As pessoas são muito gentis comigo, mas quando falam enchem-me a cabeça de ruído. Também as críticas más me enchem a cabeça! Quando me sento a escrever, se tenho a cabeça cheia de outras vozes, não consigo ouvir a minha. Tem sido uma grande luta para encontrar o silêncio e continuar a trabalhar. Não tentar-me a publicar qualquer coisa, se não encontrar uma história que realmente precisa de ser contada, como “Temporada de Furacões, e encontrar uma forma de contar que acrescente algo à literatura”, diz.
Convidada pela editora Clara Capitão a visitar Portugal, Fernanda Melchor admite que gostava de conhecer o país e a cidade de Lisboa, onde se passa um dos seus livros preferidos, o “Afirma Pereira” de António Tabucchi.