22 fev, 2024 - 21:07 • Maria João Costa
Foram 248 páginas que provocaram um “terramoto político gigantesco”, diz o jornalista João Céu e Silva, autor do livro “O General que começou o 25 de Abril dois meses antes dos Capitães” (Ed. Contraponto), onde analisa o impacto que teve a publicação, há exatamente 50 anos, da obra “Portugal e o Futuro” do General António de Spínola.
Em entrevista à Renascença, no Festival Correntes d’Escritas na Póvoa de Varzim onde apresenta o livro, João Céu e Silva revela o rastilho que “Portugal e o Futuro” provocou e a forma como foi determinante para o que viria a acontecer dois meses depois, em Abril de 1974.
Segundo o autor, que reuniu vários testemunhos, o livro que escapou à censura lançou na população portuguesa a perceção “de que o Governo estava por um fio” e que a “guerra colonial não poderia ser vencida”. Pelo meio nas páginas deste livro, Céu e Silva revela que, afinal, o monóculo usado por Spínola não tinha qualquer graduação. Era apenas uma questão de imagem.
Passam exatamente hoje, 22 de fevereiro, 50 anos da publicação de um livro que podemos dizer foi uma espécie de rastilho para aquilo que conduziu ao 25 de Abril. Que importância teve a publicação de “Portugal e o Futuro” do General António de Spínola?
Este livro acaba por ser extremamente importante nos acontecimentos que levam ao 25 de Abril, por muito que os Capitães não o queiram assumir. Os Capitães sempre esconderam o livro do Spínola, o “Portugal e o Futuro” foi sempre escondido nos últimos 50 anos. Aliás, num dos depoimentos que recolho no livro do General Ramalho Eanes, ele diz que o livro foi “enclausurado”.
Este livro tem muita importância porque, primeiro, o Spínola teve muita importância na formação dos Capitães, porque todos eles foram subordinados do comandante Chefe da Guiné, ou seja, o Spínola. Eles aprenderam que podiam falar à vontade.
No dia em que sai, há exatamente 50 anos, foram vendidos dois mil exemplares do livro “Portugal e o Futuro” entre as 9h00 e as 14h00, na livraria Apolo 70, onde estava à venda. O livro vendeu 238 mil exemplares, em dois meses! E trazia uma mensagem que era a vitória exclusivamente militar, era inviável, ou seja, Portugal não conseguiria nunca ganhar a guerra em África. Isto vindo do general mais prestigiado, e mais conhecido de Portugal, de então, foi um choque.
Como é que o livro passou a censura?
O General Spínola era um homem de táticas. Ele organizou uma estratégia e conseguiu enganar toda a gente! Ele tinha que ter OK do seu superior hierárquico, o General Costa Gomes, que também era uma pessoa que não era muito a favor do regime, e o Costa Gomes fez um parecer em que dizia que o livro não era um problema. O livro até era uma grande solução para Portugal.
E o livro consegue passar. O ministro Silva Cunha, que deveria também ter lido, mas não lê e usa esse parecer. Todos usam o parecer e quando o livro sai não é apreendido pela PIDE como era norma. Criou-se a ideia de que o Marcello Caetano era conivente com o livro.
E Marcello Caetano terá lido o livro “Portugal e o Futuro”?
Ele só leu na véspera. Ele recebeu o livro três dias antes, autografado pelo Spínola, mas estava muito ocupado e não leu. E na véspera leu. Quando começou a ler aquilo à noite, foi até de madrugada.
Lê o livro de seguida, e quando acabou o livro ele teve a premonição de que vinha um golpe militar, e manda chamar o Costa Gomes e o Spínola para irem lá a casa dele na manhã seguinte e mete o cargo à disposição. E diz: "o senhor que escreveu o livro e o senhor que autorizou o livro vão falar com o Presidente da República e tomem conta do da governação, porque eu não tenho interesse".
Mas o Presidente Américo Thomás diz que não, usa mesmo uma frase muito popular que é: “se isto correr mal, vamos todos ao fundo, mas vamos todos.” O mais importante deste livro junto da população portuguesa, porque vendeu 238 mil exemplares, e atingiu muita gente, criou a perceção de que, afinal, a guerra poderia não ser obrigatória, afinal, a política Marcello Caetano poderia estar errada, ou seja, criou um terramoto político gigantesco. E daí vamos até ao 25 de Abril.
Com o "Golpe das Caldas" pelo meio.
Com o golpe pelo meio. Faltavam dois meses até ao 25 de Abril e quando os Capitães vão para a rua, na madrugada de 25 de Abril, a sociedade estava abalada. Nós não vemos a PIDE na rua, não vemos GNR, não vemos o reforço militar, não há uma reação.
Uma das grandes surpresas do 25 de Abril é o regime cair como um castelo de cartas, ou seja, havia também essa perceção civil dos portugueses que o Governo estava por um fio, apesar de que até ao dia 24 toda a gente achava que este regime era eterno.
Como é que foi a investigação para este livro? Recolheu muitos testemunhos de quem esteve envolvido nestes momentos?
Pois, este livro tem uma particularidade. É a biografia de um livro. Para mim, o General Spínola não é uma figura que me atraia assim tanto. É uma figura, entre as muitas figuras portuguesas, mas o livro dele para mim era importantíssimo, porque achei que se justificava estudar o livro.
Fiz a investigação e consegui encontrar ainda vivas as pessoas que tinham estado na génese do livro, o Embaixador Nunes Barata, que foi quem deu, sem querer, a ideia para o Spínola fazer o livro. O Dr. José Blanco, que fez a harmonização do livro e várias outras pessoas que colaboraram e conheceram o General Spínola na altura.
Este livro tem cerca de 15 depoimentos. Seis ou sete são mesmo de pessoas que colaboraram no livro e que colaboravam com o General Spínola, em 1973 e 1974. Depois faço absoluta questão de fazer o crivo. Então tenho um historiador de esquerda, o Fernando Rosas. Um historiador de direita, o Jaime Nogueira Pinto, o biógrafo do próprio Spínola. Faço um crivo para saber se as opiniões são válidas.
O livro faz uma reconstrução daquela época de como é que o livro surge. Como é que o livro avança e os efeitos que teve.
Ao mesmo tempo, o livro retrata o General Spínola, mostra o seu lado mais vaidoso, a questão curiosa do monóculo que afinal era apenas uma questão de estilo. Ele acaba por ser um pouco vítima dele próprio?
Exato. Ele nunca se arrependeu de ter publicado o livro. Ele arrependeu-se de, quando sai o livro, não ter feito, ele próprio, um golpe militar. Disso, ele vem a arrepender-se mais tarde, e diz ainda em vida isso.
O importante era o livro, mas o seu autor tinha que estar presente e, então, eu descrevo várias facetas, algumas mais risíveis, como essa do monóculo. Vim a descobrir que o monóculo era de vidro normal, não tinha graduação! É uma coisa estranha quando uma pessoa, um militar, com aquele prestígio, se vale destes artifícios, do pingalim, das botas de montar. Ele ia fazer as inspeções na Guiné, no mato com botas de montar engraxadíssimas, com as luvas brancas.
Ele próprio era uma figura! Portanto tento, também, contar um pouco do que era o General Spínola. Depois publica este livro, e no dia 25 de Abril de madrugada, quando os Capitães saem para a rua, o livro fica obsoleto.
Os Capitães vão numa direção, de uma descolonização imediata, ou muito rápida. O Spínola vai noutra direção. Há o Partido Comunista que começa a avançar, e o Spínola entra em choque com o Partido Comunista. Depois vai para o exílio, onde cria um movimento de extrema-direita violento, portanto, perde-se.
Este livro dá-lhe a grande notoriedade que ele sempre quis ter na vida, mas durante dois meses. A partir daí o Spínola deixa de existir, se bem que o Mário Soares vai repescá-lo e torna-o membro das ordens honoríficas, torna-o Marechal, a ele, e ao Costa Gomes. O Mário Soares chegou à conclusão que a luta do Spínola contra o PCP, era também a própria luta dele contra o PCP naqueles anos 1975
Vários membros da casa civil de Mário Soares eram spinolistas. Portanto, o Spínola acaba por ser aceite. E, apesar da confusão que ele fez a seguir ao 25 de Abril, ele acaba por se encaixar na sociedade portuguesa, e morre em paz.
Qual a importância da publicação deste livro nesta altura em que estamos a celebrar os 50 anos do 25 de Abril?
Eu escrevi o livro de modo a sair agora. Não foi por acaso. Há um propósito. Eu considero que a celebração dos 50 anos do 25 de Abril não pode ser apenas um branqueamento de todas as realidades.
Quando olhamos a 50 anos de distância, facilitamos certas análises e, portanto, eu publico este livro agora, porque acho que é a única forma de conseguir explicar certos factos e que não estas comemorações não sejam, apenas, e vou repetir a palavra, um branqueamento ou ignorar, como se estava a ignorar, este livro, e ignorar outros factos que nós vamos ver nos próximos meses.